terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Entendendo a negociação da pena no novo Código de Processo Penal






É bastante provável que nosso país se torne uma referência no modelo de aplicação imediata de pena, instituto inspirado no plea bargain, utilizado nos Estados Unidos desde o século XIX.





Imagine a seguinte situação: um sujeito percebe que determinada residência em um bairro nobre de sua cidade fica desocupada todos os meses, entre o dia 10 e o dia 15, período em que o casal de comerciantes que ali reside viaja ao exterior para adquirir novos produtos para suas lojas.

Ele passa então a planejar o arrombamento da casa. No mês de janeiro de 2012, aproveitando-se da ausência dos moradores, escala o muro da casa, invade o imóvel e de lá subtrai jóias e dinheiro, que utiliza nos dias seguintes para saldar dívidas.

Os comerciantes, no entanto, eram relativamente cautelosos: a casa não é assim tão segura, mas possui câmeras de vigilância. Tão logo retornaram para casa, isolaram a área e noticiaram o fato à Polícia Civil. Um inquérito policial é instaurado.

Em razão das filmagens, o criminoso é identificado em poucos dias. Localizado pelos policiais, é intimado para apresentar explicações e confessa a prática delitiva. O Delegado de Polícia é minucioso e determina a realização de outras diligências, visando à localização de possíveis testemunhas. Dez vizinhos são entrevistados, cinco deles viram o investigado próximo à casa, em dias alternados. Ninguém presenciou o fato.

Entendendo que o trabalho da Polícia Judiciária já se esgotou, o Delegado relata o inquérito.

O combativo Promotor de Justiça, no entanto, considera que uma perícia datiloscópica pode tornar mais robustas as provas contra o ladrão. Após a requisição do Ministério Público, uma equipe de papiloscopistas vai ao local e coleta impressões digitais em várias partes da residência. Apesar de já ter se passado algum tempo, os peritos conseguem demonstrar que muitas delas foram deixadas no local pelo criminoso.

De posse das novas provas, o Promotor de Justiça apresenta denúncia ao Poder Judiciário, requerendo a oitiva, em audiência, das vítimas, de quatro vizinhos que teriam visto o suspeito no local dos fatos e dos dois papiloscopistas que estiveram no local. A denúncia é recebida em outubro de 2012.

O acusado é cientificado da existência da ação penal e informa que não possui advogado. Representado pela Defensoria Pública, apresenta defesa, em 12 de dezembro de 2012, informando que prefere se manifestar no decorrer do processo e que gostaria que fossem ouvidos os donos da farmácia onde trabalha, que podem atestar que o acusado é pessoa de boa conduta e que o delito foi um fato isolado em sua vida.

O Juiz responsável pelo processo é dedicado, como a maioria dos magistrados no Brasil. A grande quantidade de feitos em tramitação em sua unidade torna inevitável a realização de audiências em todos os dias da semana, reduzindo seu tempo para atender partes e advogados, despachar e cuidar de questões administrativas do Fórum.

Diante da necessidade de destacamento de tempo para colher os depoimentos das dez testemunhas indicadas pelas partes, da necessidade de interrogatório do acusado e do volume de audiências já designadas, a instrução criminal é marcada para o dia 15 de julho de 2013, sendo expedidos onze mandados de intimação, que deverão ser cumpridos pessoalmente pelo Oficial de Justiça.

O acusado espera por este dia há um ano e cinco meses. As vítimas e as testemunhas sequer se recordam de detalhes dos fatos e já consideravam que nenhuma providência havia sido tomada.

A audiência é iniciada. São ouvidas as vítimas, as testemunhas da acusação e as testemunhas da defesa. O réu é interrogado por último e confessa a prática do delito, exatamente como havia feito no começo do ano anterior. As partes não pedem novas diligências. Apresentam seus argumentos finais, uníssonas ao pedir que a reprimenda seja aplicada em seu mínimo legal e que seja substituída por duas penas restritivas de direito. Na sentença, o Juiz determina que o réu indenize as vítimas pelos prejuízos sofridos e que trabalhe durante setecentos e trinta horas, gratuitamente, no hospital da comarca.

Pois bem. Está em tramitação no Congresso Nacional o PLS 156/2009 (Novo Código de Processo Penal). O exemplo narrado acima descreve um processo finalizado em um ano e cinco meses, prazo "ágil"se considerada a média de tramitação de feitos criminais no Brasil. Um excelente trabalho do Juiz Vilian Bollmann, intitulado "Medindo o prazo no Processo Penal", indica que os processos no Brasil apresentam tempo médio de 1.430 dias entre os fatos e a sentença, o que corresponde a quase quatro anos de andamento processual.

Uma das principais inovações do novo texto adjetivo se refere à possibilidade de aplicação imediata de pena nos crimes com punição máxima inferior a oito anos.

Se o novo texto for aprovado, o Ministério Público e o acusado (representado por seu defensor) poderão requerer ao Juiz a aplicação imediata da pena, em seu mínimo legal, dispensando a produção de provas, desde que o acusado seja confesso, sem prejuízo da substituição da reprimenda privativa de liberdade por restritiva de direitos, ou de concessão de sursis.

O dispositivo é claramente inspirado no plea bargain, utilizado nos Estados Unidos desde o século XIX.

Atualmente, pelo menos 90% das sentenças criminais nos Estados Unidos são prolatadas seguindo este rito. A negociação é utilizada também no Canadá, Índia e Paquistão. Em países adotantes do direito positivo o modelo encontra maior resistência, principalmente porque a confissão é recebida meramente como mais uma prova a ser apreciada pelo Poder Judiciário. Entretanto, encontra previsão, ainda que mitigada, na França, Alemanha, Itália, Polônia e Geórgia.

No ordenamento brasileiro a transação penal é hoje o instituto que mais se aproxima do modelo americano e é largamente utilizada nos Juizados Especiais Criminais.

Nos Estados Unidos o acusado tem a prerrogativa constitucional de ser julgado por um Júri, cabendo à acusação provar sua culpa e ao Juiz sopesar os fatos cuidadosamente para prolatar a sentença. Contudo, a constitucionalidade do plea bargain jamais foi afastada pela Suprema Corte. Pelo contrário, no ano de 1971, no caso Santobello v. New York (404 U.S.), o sistema foi definido como "um componente essencial da administração da justiça".

A implantação deste modelo no Brasil é bastante sedutora. Como Juiz, suponho que a redução ou simplificação de 90% dos processos criminais de minha comarca permitirá uma otimização do trabalho, inclusive com considerável redução de despesas. Sempre digo que o Estado brasileiro é perdulário para julgar e estupidamente econômico para prevenir e investigar.

O caso mencionado no início deste texto teria terminado em 30 ou 40 dias, talvez menos. É claro que a supressão de formalidades acarreta alguns receios, como a realização do acordo por medo ou pressão, a confissão para acobertar um delito cometido por terceiro ou a aplicação de punição inferior à que seria devida.

Por outro lado, no Brasil os membros do Ministério Público são concursados, escolhidos com rigor entre os mais competentes profissionais da área jurídica interessados no exercício desta função. Como ocorre em outras áreas, é bastante provável que nosso país se torne uma referência na aplicação deste modelo.

Hugo Barbosa Torquato Ferreira
Jus Navigandi

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Direito Penal do inimigo



A criminalidade diferenciada, globalizada e crescente não pode mais ser punida com base no direito penal clássico. Todavia a aplicação do direito penal do inimigo requer análises e estudos aprofundados, devendo ser aplicado em hipóteses excepcionais.

Não se pode olvidar de que o homem alcançou seus mais elevados patamares de avanços sociais e tecnológicos vivendo em sociedade.



Toda a complexidade das relações que se formaram ao longo do tempo, resultou em um Mundo unido e sem fronteiras.

Ao mesmo passo que o homem adquiriu benefícios da vida em conjunto, necessitou de estabelecer regras que pudessem limitar direitos e impor obrigações. Foi desta forma que surgiram as primeiras normas, estabelecendo diretrizes mínimas para a vida em conjunto.

Substituindo as soluções de conflitos, que no início eram resolvidos sem nenhuma restrição, sem nenhum critério limitador e entre as próprias partes, nasce o Estado, intervencionista, para mediar os litígios (pretensões resistidas).

O direito na sua concepção de limitador permitiu uma vida em sociedade pacificada, trouxe segurança jurídica às pessoas, intensificou as relações comerciais, aglomerou países em blocos econômicos, e com os avanços tecnológicos passamos a viver em Mundo unido e globalizado.

Ocorre, porém, que ao passo em que houve todo esse crescimento, científico, econômico e cultural, o homem também mudou sua forma de viver e de se relacionar. A vida nos grandes centros urbanos ocasionou novos rumos do direito, até mesmo a vida no campo deixou de ser tranquila e pacata.

O direito, assim entendido como um todo único, foi divido em ramos, com o intuito de facilitar o entendimento e a aplicação da norma. Assim, podemos mencionar como ramos do direito: o direito civil, o direito do trabalho, o direito constitucional, o direito penal, entre outros ramos, contudo, jamais deixando de analisar o direito de uma forma sistemática e abrangente.

O direito penal, ramo do direito público, tutela os bens jurídicos, considerados como os mais importantes para a sociedade, como a vida, a honra, o patrimônio, o Estado etc.

Como todos os demais ramos do direito, o direito penal também adquiriu novos rumos, necessitando de alterações para proteger os bens e valores elencados como primordiais a sociedade (nesse aspecto encontramos o caráter preventivo da pena).

Ao longo do tempo, novos direitos foram sendo reconhecidos e incorporados no nosso ordenamento jurídico. Com o advento da Constituição Federal de 1988, muitos avanços surgiram no âmbito de direitos e garantias fundamentais que passaram a integrar a legislação brasileira, tornado-se alguns direitos cláusulas pétreas, ou seja, direitos que não podem sofrer nenhuma supressão, uma vez que incorrem na inconstitucionalidade da lei, ainda que sejam apenas propostas de discussões para a retirada desses direitos, é totalmente vedado pela nossa Constituição Federal.

Direitos e garantias fundamentais do homem, são aqueles previstos não só no texto constitucional, e mais notadamente no art. 5º da Constituição Federal, mas são todos aqueles direitos que gozam do atributo da fundamentalidade, consistente em direitos essenciais para uma vida justa, plena, eivada de liberdades públicas e principalmente digna.

A todo homem é assegurado esses direitos e garantias, sendo o direito penal, regido por todos esses princípios constitucionais como, podemos citar o princípio da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da anterioridade, da individualização da pena etc.

Ao tratarmos do direito penal do inimigo, estaremos analisando as novas perspectivas de atuação do direito penal, a luz de um novo contexto social, de uma criminalidade diversificada e crescente, bem como no que se refere à relativização de direitos e garantias constitucionais e infraconstitucionais consagrados no nosso ordenamento jurídico.

Assim afirma o professor Alexandre Rocha Almeida de Moraes, ao fazer referência ao direito penal do inimigo, citando Winfried Hassemer:
"é curioso também notar que a tendência moderna de penas mais brandas não está presente na criminalização abrangente e flexível dos modernos tipos penais. Aqui, o legislador predispõe-se ao endurecimento e à intimidação, como por exemplo no ‘combate’ da criminalidade organizada, na disciplina penal do comércio exterior e de armas bélicas, ou no Direito Penal Ambiental". [01]

O Estado-juiz, entendido como aquele impõe as regras a serem seguidas pela sociedade, atua visando alcançar o bem comum. Recebe de forma legítima o poder para agir em nome do povo, que por ser o único titular desse poder transfere aos seus representantes para que atuem em seu nome.

Cada sociedade possui peculiaridades que lhes são próprias. Em nenhum lugar do Mundo encontramos países com os mesmos valores elencados como primordiais. Isso é fruto da formação e evolução histórica do país, por vezes influenciada pela colonização, momentos de ditaduras, guerras, destruições causadas por fenômenos naturais, podendo ainda mencionar, nos dias atuais, o terrorismo fortemente articulado e crescente no Mundo.

A criminalidade aparece de forma diferente no contexto social, pode ser regionalizada dentro de um país ou região, ou atuar no cenário mundial, em grandes conglomerados de facções e organizações criminosas.

No Brasil, pela dimensão territorial, encontramos esse fenômeno da regionalização de alguns crimes e uma forma diferenciada de atuação da criminalidade. Todavia, as organizações criminosas, que se tornaram atuantes nos grandes centros urbanos, estão com o passar do tempo alcançando áreas cada vez maiores de alcance.

O direito penal ganhou novas atribuições e atualizações. Estudiosos procuraram entender o fenômeno do crime, surgiram diversas teorias que procuraram explicar a atuação do direito penal, seus limites, sua função preventiva (como forma de evitar a ocorrência de delitos), ou sua função puramente reafirmadora da própria norma, bem como, na ocorrência de crimes um método eficaz de ressocialização da pessoa do delinquente e a sua reinserção no meio social.

Modernamente, segundo Jesus-Maria Silva Sánchez, o direito penal está dividido em três categorias, que denominou como velocidades do direito penal: a primeira velocidade refere-se à criminalidade comum; a segunda velocidade é considerada por alguns como forma de banalização do direito penal, no que diz respeito a leis penais apenas para contenção de expectativas sociais ocasionada por um determinado acontecimento, pela flexibilização a favor do réu, por normas que punem apenas camadas desfavorecidas da sociedade, fazendo com que o direito penal atue de forma positiva na prevenção de crimes[02]. Para Günther Jakobs, no entanto, o direito penal não teria essa prevenção positiva da pena, de forma primordial, seria uma forma de reafirmar a vigência da norma ao ser aplicado [03]; e a terceira velocidade caracterizada pelo direito penal de intervenção, encontramos o direito penal do inimigo, sendo presente a flexibilização de alguns direitos e garantias fundamentais [04].

Importante ressaltar que o direito penal do inimigo, segundo entendimento do professor Jakobs, é uma tese formulada para ser aplicada, "ao terrorismo e às demais formas da criminalidade organizada em Estados de direito consolidados" [05]. Não se mostra possível a aplicação do direito penal do inimigo em sociedades carentes de recursos, com problemas estruturais, institucionais, valorativos, bem como aos crimes cometidos em razão de exclusão social, uma vez que para estes caberia o direito penal do cidadão, consistente na reafirmação da vigência da norma.

Não podemos deixar de mencionar que as normas de direito são impostas ao indivíduo, isto é, são mandamentos que não estão na esfera de disposição, tampouco podem deixar de ser seguidos por todos aqueles que estão dentro de uma sociedade juridicamente organizada.

Enquanto a moral, de maneira diversa, encontra-se na esfera de disposição dos indivíduos, que atuam da forma que desejam.

O estudo realizado entre o direito e a moral resulta em concluir que quanto mais elevada a moral de um povo, menor é a incidência de normas de direito, e como consequência lógica o direito irá atuar de maneira mais incisiva naquelas sociedades carentes de valores morais e éticos.

O direito penal apresenta como característica o papel de espelhar o caráter distintivo de um povo, revelando os valores éticos presentes em uma sociedade. Há uma ligação íntima entre o direito e a moral, não sendo possível criar um modelo de política criminal a ser aplicado abstratamente na sociedade, pela incompatibilidade de adequação aos usos e costumes.

Atualmente, além da criminalidade presente em cada território, é possível falar em "globalização do crime", com atores supranacionais, resultante da revolução dos meios tecnológicos, de comunicação, de uma economia integrada e sem fronteiras territoriais.

Após o atentado ocorrido no World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, houve uma maior legitimação da possibilidade de flexibilização de direitos, a partir de uma nova visão da sociedade e de novos sujeitos no cenário do crime, como mencionou o professor Damásio de Jesus:
"parafraseando Eric Hobsbawn, cunhou e expressão: 'a queda do muro de Berlin em 09 de novembro de 1989 encerrou o século XX e da mesma forma, a densidade do conteúdo histórico do 11 de setembro tornou-se capaz de demarcar o início de um novo período da História mundial"[06].
Certamente o Mundo sofreu alterações que culminaram no surgimento de relativizações de direitos e garantias fundamentais, de uma forma inovadora para o sistema penal vigente.

Para os doutrinadores que afirmam a existência e a importância do direito penal do inimigo, não há outra forma eficaz para atuar frente à globalização de crimes, as organizações criminosas e ao terrorismo. Segundo o entendimento do professor Alexandre Rocha Almeida, o direito penal do inimigo é um direito de guerra e não um direito penal de garantias [07].

A atuação do direito penal do inimigo requer uma descodificação da legislação, uma nova formatação de tipos penais, flexibilização de garantias penais e processuais penais, antecipação da tutela penal pelo princípio da precaução, criminalização de determinados atos preparatórios, bem como novas técnicas de investigação. Para o professor Alexandre Rocha de Almeida de Moraes:
"essas tendências na evolução tanto do Direito Penal material, como do Direito Penal processual, revelam no horizonte político-criminal os traços de um ‘Direito Penal do risco’ que parece não mais se amoldar ao modelo clássico-liberal de inspiração iluminista. Agora se sacrificam garantias fundamentais em nome de uma pretendida luta efetiva contra a criminalidade" [08].
O direito penal do inimigo não está voltado para o cidadão, mas sim para o que se denominou "inimigo", diferenciados dos demais membros da sociedade, como afirma o professor Zaffaroni: "a eles é negado o direito de terem suas infrações sancionadas dentro dos limites do direito penal liberal, isto é, das garantias que hoje o direito internacional dos direitos humanos estabelece universal e regionalmente" [09].

São normas rígidas, impositivas, aplicadas de maneira intensa e excepcionalmente em situações que atendam características peculiares, resultantes de um perigo. Aplicada a todo aquele que contraria a norma por princípio e que por isso não pode ser tratado como cidadão. Conforme entendimento de Luis Gracia Martín [10]:
"Esses princípios e regras próprios do Direito Penal do inimigo seriam impostos pelo significado das circunstâncias fáticas que caracterizam a atividade e a posição do inimigo frente à sociedade, e sua configuração seria a de instrumentos adequados ao fim de prevenção do perigo que representa o inimigo, que só pode ser combatido através de sua derrota ou eliminação na guerra desencadeada entre ele e o Estado, e mediante sua inocuização".
Ressalta-se, ainda, que muito embora se faça uma divisão entre direito penal do cidadão e direito penal do inimigo, estaremos dentro do ramo do direito penal, apenas havendo uma diferenciação para aplicação em casos que o Estado reconheça de um lado cidadãos que cometeram um delito comum e de outro aqueles que devem ser impedidos, mediante força, de destruírem o ordenamento jurídico de um Estado.

No entendimento do professor Jakobs o direito penal do inimigo encontrando-se com contornos bem demarcados apresenta menos perigo em relação ao Estado de Direito, do que mesclar o direito penal com partes do direito penal do inimigo [11].

Contudo, mesmo havendo flexibilização de direitos e garantias, chegando ao ponto de alguns direitos serem suprimidos, o Estado de direito não deverá desaparecer por completo, como garantia da aplicação eficaz da norma. Confirmando esse entendimento Luis Gracia Martín explica que é haverá uma "considerável restrição de garantias e direitos processuais dos imputados", permitindo uma maior possibilidade de investigação, ampliando sensivelmente os procedimentos já adotados, restringindo direitos desde a fase inicial até o momento de execução da pena[12].

Diante da ocorrência de fatos considerados atentatórios o próprio Estado, com o intuito de evitar tais danos, é possível a atuação do direito penal do inimigo de forma antecipatória, partindo do princípio da precaução, conforme salienta o jurista alemão Jakobs "no lugar do dano atual à vigência da norma entra o perigo de danos futuros – uma regulação de Direito Penal do Inimigo. O que pode ser adequado no caso dos terroristas..." [13].

O criminoso aqui estará agindo contra a sociedade, devidamente constituída a partir de um acordo entre os cidadãos. Neste caso a exclusão do meio social é inerente ao próprio modo de atuação do agente, que perde alguns direitos por não aderir às normas previstas e que por isso torna-se um adversário, um inimigo.

Segundo a orientação de Jakobs os cidadãos que não oferecem segurança de comportamento pessoal não podem ser tratados como pessoas pelo Estado, uma vez que esse tratamento acarretaria em insegurança aos outros membros da sociedade [14].

Podemos elencar, por exemplo, como potenciais inimigos aqueles que cometem crimes de terrorismo, econômicos, pessoas ligadas a organizações criminosas, que de forma veemente demonstram não seguirem as normas de direito, tampouco trazem garantias de retorno ao convívio social.

Desta forma, para punir esses criminosos surge o direito penal do inimigo com características próprias, conforme salienta o professor Alexandre Rocha Almeida de Moraes, seria um direito para atuar punindo os atos preparatórios, antecipando a punibilidade, tipificando delitos de mera conduta e de perigo abstrato, aplicando a pena de forma desproporcional, constituindo legislações próprias, limitando garantias penais e processuais, bem como os regimes de cumprimento de penas, tornando-os mais rígidos [15].

Podemos observar do acima mencionado, que o direito penal do inimigo procura atuar em crimes que trazem um grau elevado de reprovação, uma vez que atentam em partes vitais da sociedade, isto é, na sua estrutura organizacional. Ademais, podemos mencionar que essas condutas acabam por recair em um número elevado de pessoas, atingindo-as diretamente ou prejudicando-as por meio de atos atentatórios ao Estado e a segurança mundial.

A punição de atos preparatórios tem o intuito de coibir ações potencialmente lesivas, pelo princípio da precaução, para evitar a ocorrência de resultados graves, entendendo a sociedade que a punição precoce de atos relacionado a delitos graves reafirmam a busca pelo bem comum, isto é, por um convívio plenamente harmônico e seguro.

A desproporcionalidade das penas aplicadas no Direito Penal do inimigo consistiria em punir os atos que antecedem o crime com a pena prevista para a sua consumação, partindo da gravidade que envolve as condutas anteriores a prática do crime, bem como um agravamento considerável da pena prevista para os delitos consumados [16].

Ocorre, porém, que a terceira velocidade do direito penal sofre algumas críticas e certo repúdio por parte de alguns doutrinadores, diante da forma de tratamento do inimigo, da aplicação do direito e da atuação do Estado.

A flexibilização poderia acarretar em abusos, perseguições, punições irrestritas e visivelmente numerosas (por ser o Estado o sujeito passivo dos crimes), poderia fazer diferenciações de raças e classes sociais, levando o direito penal a servir como meio de acalmar os ânimos dos cidadãos, através de discursos puramente demagogos [17].

Outrossim, conforme menciona o professor Luiz Flávio Gomes, em relação a normas processuais que: "não se segue o processo democrático (devido processo legal) sim, um verdadeiro procedimento de guerra; mas essa lógica 'de guerra' (de intolerância, de vale-tudo contra o inimigo) não se coaduna com o Estado de Direito" [18]. Conclui o autor que se trata de um direito inconstitucional, e que olhar a pessoa como um inimigo leva a excessos, fere a razoabilidade colocando em risco o Estado Democrático

Em decisão pelo Supremo Tribunal Federal, relator Ministro Celso de Mello, foi no seguinte sentido:
"Ementa: "habeas corpos" - inexistência de direito subjetivo a regime de comprimento penal mais brando - possibilidade de imposição de regime mais gravoso - réu primário e de bons antecedentes, condenado a pena não superior a 08 (oito) anos (CP. art. 33, § 2º, "b") - estipulação do cumprimento da pena em regime inicialmente fechado - fundamentação baseada apenas nos aspectos inerentes ao tipo penal, no reconhecimento da gravidade objetiva do delito e na formulação de juízo negativo em torno da reprovabilidade da conduta delituosa - constrangimento ilegal caracterizado - pedido deferido. Revela-se inadmissível, na hipótese de condenação a pena não superior a 08 (oito) anos de reclusão, impor, ao sentenciado, em caráter inicial, o regime penal fechado, com base, unicamente, na gravidade objetiva do delito cometido, especialmente se se tratar de réu que ostente bons antecedentes e que seja comprovadamente primário. O discurso judicial, que se apóia, exclusivamente, no reconhecimento da gravidade objetiva do crime - e que se cinge, para efeito de exacerbação punitiva, a tópicos sentenciais meramente retóricos, eivados de pura generalidade, destituídos de qualquer fundamentação substancial e reveladores de linguagem típica dos partidários do "direito penal simbólico" ou, até mesmo, do "direito penal do inimigo" -, culmina por infringir os princípios liberais consagrados pela ordem democrática na qual se estrutura o Estado de Direito, expondo, com esse comportamento (em tudo colidente com os parâmetros delineados na Súmula 719/STF), uma visão autoritária e nulificadora do regime das liberdades públicas em nosso País. Precedentes" [19].
Podemos observar que o tema discutido no presente trabalho não apresenta uma posição pacífica, compreendendo parte dos juristas e doutrinadores que o direito penal do inimigo fere direitos e garantias previstos no Estado de Direito, e que um tratamento desigual contraria a própria norma. Concluem que, a partir dessa perspectiva, a lei torna-se inconstitucional, frente a um direito penal que está voltado para o homem, sujeito de direitos e garantias fundamentais consagrados e petrificados ao longo da história.

No entanto, há posições destacadas compreendendo que o direito penal do inimigo, como já salientado, é parte do direito penal que por sua vez integra o direito, analisado de forma sistêmica como uma ciência una. O que se quer preservar é o Estado de Direito em todos os seus aspectos, atuando o direito penal em um último momento, para situações de flagrante emergência, quando demais ramos do direito não conseguirem de forma eficaz solucionar o conflito.

Em nenhum momento os doutrinadores mencionam em uma criação de normas de destruição e de violações irrestritas, como resposta aos ataques violentos advindos das novas formas de criminalidade. O intuito é trazer uma fórmula eficaz para reações visivelmente gravosas, surgidas em momentos de grande conflito e perturbação social.

Recordamos a imensa evolução que vem sofrendo Direito Penal nos últimos séculos e, principalmente, nas últimas décadas em que esse processo foi acelerado por meio da solidificação das democracias e direitos e garantias individuais, tendo estes sua égide em constituições sociais em todo mundo, entretanto, o elemento central desta ciência jurídica não se alterou na sua essência, qual seja, a conduta humana dirigida a um fim.

Diante de todo o exposto, podemos concluir que não há um consenso entre os operadores do direito, quanto à aplicação do direito penal do inimigo, no entanto, reflexões e mudanças tornam-se necessárias, frente às modificações sociais e o papel desempenhado pelo Estado. A criminalidade diferenciada, globalizada e crescente não pode mais ser punida com base no direito penal clássico, todavia a aplicação do direito penal do inimigo requer análises e estudos aprofundados, devendo ser aplicado em hipóteses excepcionais, com base nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

BIBLIOGRAFIA.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral, volume 1. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
GRACIA Martín, Luis. O Horizonte do Finalismo e o Direito Penal do Inimigo. Tradução Luiz Regis Prado e Érica Mendes de Carvalho; prefácio José Ignácio Lacasta-Zabalza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. 2ªTiragem. Organização e Introdução: Luiz Moreira, Eugênio Pacelli de Oliveira. Tradução dos originais em alemão: Gérlia Batista de Oliveira Mendes. Rio de Janeiro: Lumen Juris – 2009.
JACOBS, Günther. Fundamentos do Direito Penal. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2003.
MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Direito Penal do Inimigo: a terceira velocidade do direito penal. 1º ed. (ano 2008), 1ªreimpr./Curituba: Juruá, 2010.
SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 22.ed.rev. e ampl. de acordo com a ABNT – São Paulo: Cortez, 2002.

Jurisprudencia.asp

 Acesso em 23 de novembro, 2010.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 2º ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.


Notas


MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Direito Penal do Inimigo: a terceira velocidade do direito penal. 1º ed. (ano 2008), 1ª reimpr./Curituba: Juruá, 2010, p. 178.



MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Direito Penal do Inimigo: a terceira velocidade do direito penal. 1º ed. (ano 2008), 1ª reimpr./Curituba: Juruá, 2010, p. 230.



JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. 2ª Tiragem. Organização e Introdução: Luiz Moreira, Eugênio Pacelli de Oliveira. Tradução dos originais em alemão: Gérlia Batista de Oliveira Mendes. ed. Lumen Juris – 2009, Rio de Janeiro. p. XVI.



MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Direito Penal do Inimigo: a terceira velocidade do direito penal. 1º ed. (ano 2008), 1ª reimpr./Curituba: Juruá, 2010, p. 230.



JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. 2ª Tiragem. ed. Lumen Juris – 2009, Rio de Janeiro. p. XXVII.



MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Direito Penal do Inimigo: a terceira velocidade do direito penal. 1º ed. (ano 2008), 1ª reimpr./Curituba: Juruá, 2010, p. 175.



Ibid.,p.184.



Ibid.,p.179.



ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 2º ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 11.



GRACIA Martín, Luis. O Horizonte do Finalismo e o Direito Penal do Inimigo. Tradução Luiz Regis Prado e Érica Mendes de Carvalho; prefácio José Ignácio Lacasta-Zabalza. São Paulo: ed. Revista dos Tribunais, 2007, p. 88.



JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. 2ª Tiragem. Organização e Introdução: Luiz Moreira, Eugênio Pacelli de Oliveira. Tradução dos originais em alemão: Gérlia Batista de Oliveira Mendes. ed. Lumen Juris – 2009, Rio de Janeiro. p.23.



GRACIA Martín, Luis. O Horizonte do Finalismo e o Direito Penal do Inimigo. Tradução Luiz Regis Prado e Érica Mendes de Carvalho; prefácio José Ignácio Lacasta-Zabalza. São Paulo: ed. Revista dos Tribunais, 2007, p. 89/90.



JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. 2ª Tiragem. Organização e Introdução: Luiz Moreira, Eugênio Pacelli de Oliveira. Tradução dos originais em alemão: Gérlia Batista de Oliveira Mendes. ed. Lumen Juris – 2009, Rio de Janeiro. p.19.



MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Direito Penal do Inimigo: a terceira velocidade do direito penal. 1º ed. (ano 2008), 1ª reimpr./Curituba: Juruá, 2010, p. 191.



MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Direito Penal do Inimigo: a terceira velocidade do direito penal. 1º ed. (ano 2008), 1ª reimpr./Curituba: Juruá, 2010, p.196.



GRACIA Martín, Luis. O Horizonte do Finalismo e o Direito Penal do Inimigo. Tradução Luiz Regis Prado e Érica Mendes de Carvalho; prefácio José Ignácio Lacasta-Zabalza. São Paulo: ed. Revista dos Tribunais, 2007, p. 89.



MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Direito Penal do Inimigo: a terceira velocidade do direito penal. 1º ed. (ano 2008), 1ª reimpr./Curituba: Juruá, 2010, p. 249.



MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Direito Penal do Inimigo: a terceira velocidade do direito penal. 1º ed. (ano 2008), 1ª reimpr./Curituba: Juruá, 2010, p. 250.



SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, Habeas Corpus nº 85.531-8, Rel. Min. Celso de Mello. 


Autora: Évelin Vanessa Goya
Revista Jus Navigandi

domingo, 29 de janeiro de 2012

Bem jurídico e Direito Penal




O bem jurídico é um dos fundamentos do Direito Penal democrático. É necessário compreender do fenômeno de seleção dos valores sociais a serem tutelados pelo sistema de controle penal.




SUMÁRIO: Introdução; 1. Bem jurídico e bem jurídico penalmente tutelado; 2. Bem jurídico-penal e Constituição; 3. Funções da teoria do bem jurídico; Considerações finais; Referências bibliográficas.


Resumo


O Direito Penal figura como um dos mais importantes sistemas de controle social institucionalizados dentre os existentes. Busca, por meio da proteção de bens jurídicos, a pacificação e a viabilidade social. No entanto, uma vez inserido em um Estado Democrático de Direito, sua atuação somente pode ser considerada legítima quando voltado à missão que o fundamenta: a proteção de bens jurídicos-penais. Assim, para a perfeita compreensão do Direito Penal, é imprescindível o estudo da teoria do bem jurídico, perquirição que engloba a análise dos conceitos de bem jurídico e bem jurídico-penal, a avaliação do fenômeno de seleção dos valores sociais a serem tutelados pelo Direito Penal e o estudo das limitações que a teoria do bem jurídico impõe ao ius puniendi. Nessa baila, verifica-se que a atividade legislativa de criação de tipos penais incriminadores encontra na teoria do bem jurídico e na Constituição importantes barreiras que as orientam a proteger apenas valores sociais fundamentais e compatíveis com o ordenamento jurídico constitucional.

Introdução


Sabe-se que a sociedade não está imune ao desenvolvimento de conflitos e, por essa razão, faz-se imprescindível a institucionalização pelo Estado de sistemas de controle social formais. O Direito Penal, portanto, exerce função ímpar na sociedade: busca conferir meios para o desenvolvimento social pacífico, através da criação de tipos penais incriminadores, prevendo a aplicação de sanções de caráter penal àqueles que, por meio de seus atos, causem lesão ou exponham a risco concreto de lesão bem jurídico de outrem, tutelado penalmente.

Pode-se esboçar, destarte, uma primeira função do Direito Penal, qual seja, a de proteção da própria sociedade e das relações humanas nela desenvolvidas.

No entanto, conquanto almeje a proteção social, considerando a inserção do sistema penal em um Estado Democrático de Direito, balizado pelos valores da dignidade da pessoa humana e comprometido com a efetivação dos direitos fundamentais – dentre os quais, a liberdade –,tem-se que a incidência do Direito Penal só encontra legitimidade quando desenvolvida em estrita obediência a seu caráter fragmentário e subsidiário, o que se alcança apenas quando a atuação penal estatal é dirigida exclusivamente à proteção dos bens jurídicos mais importantes ao seio social.

Há de se convir, portanto, que o Direito Penal visa garantir o convívio e o desenvolvimento social pleno, por meio da proteção dos bens jurídicos mais importantes à sociedade.

Em outra perspectiva, é também por meio da proteção de bens jurídicos que o sistema penal atinge outra finalidade, consubstanciada na reafirmação dos valores sociais de maior apreço e prestígio, porquanto o processo de seleção daqueles bens jurídicos, agora dotados da qualidade de bens jurídicos-penais, constitui reflexo do que a sociedade considera primordial para a sua proteção.

Denota-se, então, que o Direito Penal visa, primordialmente, garantir o desenvolvimento pleno das relações e do convívio social, por meio da seleção e proteção de bens jurídicos fundamentais que, uma vez inseridos na esfera de proteção penal, são erigidos ao status de bens jurídicos-penais. De modo reflexo, atua ele também como meio de afirmação dos valores sociais mais caros, porquanto são a estes valores que ele dirige a sua proteção.

Assim, é de absoluta relevância para a perfeita compreensão da missão do Direito Penal no Estado Democrático de Direito o estudo da teoria do bem jurídico e das funções por ela desempenhada na atuação estatal na esfera penal.

1. Bem Jurídico e Bem Jurídico Penalmente Tutelado


Por meio do raciocínio até aqui desenvolvido foi possível fixar que o Direito Penal, este entendido como o Direito Penal democrático, uma vez inserido em um Estado Democrático de Direito, destina-se a promover meios para a existência de uma convivência social pacífica e equilibrada. E o faz por meio da proteção dos bens jurídicos fundamentais ao seio social.

Neste ponto, faz-se mister buscar a correta conceituação debem jurídico e bem jurídico penalmente tutelado, bem como perquirir seus substratos e sua formação.
Para uma compreensão inicial, segundo lição de Roxin (2006, p. 18-19),
podem-se definir os bens jurídicos como circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre, que garanta a todos os direitos humanos e civis de cada um na sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nestes objetivos.

A concepção de bem jurídico remonta, primeiramente, à ideia de bem existencial, indispensável ao desenvolvimento social, o qual, consoante lição de Bianchini, Molina e Gomes (2009, p. 232),
[...] é o bem relevante para o indivíduo ou para a comunidade (quando comunitário não se pode perder de vista, mesmo assim, sua individualidade, ou seja, o bem comunitário deve ser também importante para o desenvolvimento da individualidade da pessoa) que, quando apresenta grande significação social, pode e deve ser protegido juridicamente. A vida, a honra, o patrimônio, a liberdade sexual, o meio-ambiente etc. são bens existenciais de grande relevância para o indivíduo.
Mas a simples identificação de um bem existencial não se faz suficiente para promovê-lo ao status de bem jurídico. Antes, deve-se observar se precitado bem possui elementos que indiquem ser ele digno de proteção jurídica em uma relação social. Trata-se do chamando substrato subjetivo do bem jurídico.

Mas a simples identificação de um bem existencial não se faz suficiente para promovê-lo ao status de bem jurídico. Antes, deve-se observar se precitado bem possui elementos que indiquem ser ele digno de proteção jurídica em uma relação social. Trata-se do chamando substrato subjetivo do bem jurídico.

O substrato subjetivo do bem jurídico é o interesse do (e para o) ser humano em relação a um determinado bem existencial. A vida é um bem existencial; o interesse do ser humano pela vida (pelo seu surgimento, preservação, evitabilidade da sua destruição arbitrária etc.) constitui o substrato subjetivo do conceito de bem jurídico; esse vínculo ou interesse nada mais significa que uma relação social, que acaba sendo valorada positivamente pelo legislador [...] (BIANCHINI, MOLINA e GOMES, 2009, p. 232).

Nessa perspectiva, uma vez verificado o surgimento de um bem existencial cujo interesse para o desenvolvimento das relações sociais é indiscutível e inegável, sendo ele considerado digno de proteção jurídica, inicia-se uma atividade de reconhecimento e valoração do precitado bem pelo Direito, o qual se torna, finalmente, um bem jurídico.

Bem jurídico, por conseguinte, é o reconhecimento pelo Direito desse interesse do ser humano por um bem existencial. É o Direito que transforma o bem existencial e o interesse humano em relação a ele como bem jurídico. Em outras palavras, bem jurídico é a soma de uma coisa (bem existencial) útil, válida ou necessária para o ser humano como um valor agregado (com uma valoração positiva em razão da função que a coisa desempenha para o desenvolvimento da personalidade do sujeito) (bem jurídico = um bem existencial útil, válido ou necessário ao ser humano + uma valoração positiva desse bem feita pelo legislador) (BIANCHINI, MOLINA e GOMES, 2009, p. 233).

Portanto, nas palavras de Bittencourt (2010, p. 38), bens jurídicos "[...] são bens vitais da sociedade e do indivíduo, que merecem proteção legal exatamente em razão de sua significação social. [...] A soma dos bens jurídicos constitui, afinal, a ordem social".
E segundo raciocínio desenvolvido por Canterji (2008, p. 75),
[...] inicialmente se coloca como missão do Direito Penal a tutela do bem jurídico e, em seguida, afirma-se que bem jurídico é todo Estado Social pretendido que o Direito deseja assegurar contra lesões. Em outras palavras, o objetivo do Direito Penal é a tutela do bem jurídico, podendo esse ser conceituado como todo valor da vida humana protegido pelo Direito.
Destarte, a concepção de bem jurídico revela um interesse existencial da sociedade que, por ser tido como imprescindível à sua própria existência comunitária, recebe um juízo de valoração pelo Direito e passa a gozar de proteção jurídica. Quando essa valoração e proteção é conferida por uma norma penal, a qual prevê tipos penais incriminadores e da cominação de sanções penais, verifica-se a existência de um bem jurídico-penal.
Consoante dicção de Bianchini, Molina e Gomes (2009, p. 233),
O bem jurídico-penal, por seu turno, compreende os bens existenciais (pessoais) valorados positivamente pelo Direito e protegidos dentro e nos limites de uma determinada relação social conflitiva por uma norma penal (bem jurídico-penal = bem existencial + valoração positiva + tutela por uma norma penal). Sendo certo que a norma penal somente tutela o bem no contexto de uma relação conflitiva.
É de se notar, entretanto, que a elevação de um bem jurídico aos status de bem jurídico-penal não pode se afastar da execução de uma atividade seletiva dos valores existenciais estritamente ligada ao caráter fragmentário e subsidiário do Direito Penal, pois somente assim a atuação legiferante penal poderá ser considerada legítima e em consonância com os valores do Estado Democrático de Direito.

Recorde-se que os bens jurídicos não devem receber uma proteção absoluta e uniforme do Direito, senão seletiva e fragmentária: o Direito penal só protege os bens mais valiosos para a convivência e o faz, ademais, exclusivamente frente aos ataques mais intoleráveis de que possam ser objeto (a natureza 'fragmentária' da intervenção penal); e mesmo assim quando não existem outros meios eficazes, de natureza não penal, para salvaguardá-los (natureza 'subsidiária' do Direito penal) (BIANCHINI, MOLINA e GOMES, 2009, p. 235).

O bem jurídico, destarte, para merecer a tutela penal, necessita revelar dignidade penal, a qual, nas lições de Souza (apud, CRUZ, 2008, p. 48), "é o atributo que reveste direitos e bens jurídicos, os quais, por serem relevantes e fundamentais para o indivíduo e a sociedade, são, em razão disso, merecedores da tutela penal".

Conquanto se encontra intimamente ligado aos valores indispensáveis ao pleno desenvolvimento social, os bens jurídicossofrem constantes mutações e tendem a acompanhar a alteração do pensamento social acerca dos valores socialmente aceitos, passando, constantemente, por uma análise de adequação social. Logo, "[...] os bens jurídicos não têm uma validade natural e infinita; preferentemente, estão submetidos às mudanças dos fundamentos jurídico-constitucionais e das relações sociais" (ROXIN, 2006, p. 36).

Em suma, denota-se que bens jurídicos são interesses vitais para a existência de uma convivência social pacífica e plena, os quais, por sua imprescindibilidade, gozam de proteção jurídica. Quando essa proteção é conferida pelo Direito Penal, por meio da previsão de crimes e cominação de sanções penais, sempre em consonância com os ideais da fragmentariedade e subsidiariedade deste modelo de controle social, está-se diante de um bem jurídico-penal, noção que constitui todo o alicerce do Direito Penal democrático e da ofensividade.

2. Bem Jurídico-Penal e Constituição


O estabelecimento de uma correlação entre bem jurídico-penal e Constituição insere-se na análise do processo de seleção dos bens jurídicos a serem tutelados pelo Direito Penal. A atividade legislativa destinada à seleção de bens jurídicos-penais e à consequente criação de tipos penais incriminadores não prescinde de limites e diretrizes conferidas pelos valores constitucionalmente consagrados, pois, de acordo com os ensinamentos de Roxin (2006, p. 11),
A questão sobre qual a qualidade que deve ter um comportamento para que seja objeto da punição estatal será sempre um problema central não somente para o legislador, mas, também, para a Ciência do Direito Penal. Há muitos argumentos a favor para que o legislador moderno, mesmo que esteja legitimado democraticamente, não penalize algo simplesmente porque não gosta. […] a penalização de um comportamento necessita, em todo caso, de uma legitimação diferente da simples discricionariedade do legislador.
Portanto, o processo de seleção dos bens jurídicos-penais não se afasta das diretrizes axiológicas consagradas no texto constitucional, de forma a ser na Constituição que esta seleção encontra legitimidade, vez que
[...] de pouco serve a construção de um sistema liberal (e formal) de garantias (de limites ao ius uniendi) se depois o legislador conta com ampla margem para, sem nenhum constrangimento nem censura, ser autoritário (ou vago, ou impreciso) na seleção do bem jurídico (GOMES, 2002, p. 58).
E consoante disserta Cruz (2008, p. 51),
Entende a doutrina, quer a nacional, quer a estrangeira, que o critério de dignidade penal é conferido pela Constituição. É esta que vai fixar os bens jurídicos fundamentais e determinar, explícita ou implicitamente, sejam eles tutelados pelo Direito Penal. Assim, os valores constitucionais fundamentais vão merecer esta forma extrema de proteção.
Assim, a completa investigação sobre o bem jurídico-penal não pode se afastar da análise da forma pela qual a Constituição coordena, limita e legitima o processo de seleção dos bens jurídicos a serem alvo de proteção pelo Direito Penal, e a respectiva criação dos tipos penais incriminadores. E a perquirição ora proposta se inicia com a seguinte indagação: apenas os bens apontados pela Constituição como socialmente relevantes podem ser tutelados pelo Direito Penal, ou podem ser penalmente tutelados outros bens não consagrados expressamente pelo texto constitucional?
Na colocação de Cruz (2008, p. 54),
[...] precisamos saber se o critério apontado para a incidência da tutela penal (fundamentação constitucional) é o único, justificando inclusive a descriminalização de condutas que não tutelem bens jurídicos que sejam reflexos de valores constitucionais, ou se, ao contrário, há uma esfera de liberdade para o legislador que o permite, de acordo com o "ambiente valorativo" da sociedade, fazer incidir sobre outros bens esta forma de tutela.
Em um primeiro momento, sustentou-se a ideia de que apenas os valores literalmente consignados na Constituição poderiam ser objeto da tutela penal, já que a Carta Magna constitui o alicerce da teoria do bem jurídico. A esse respeito, duas correntes de pensamento se desenvolveram: a rígida ou inflexível e a genérica ou flexível.

Com base na ordem de valores (Wertordnung) mais importantes da nação (que emana naturalmente da Constituição), um determinado setor da doutrina, de inspiração constitucionalista em sentido estrito (concepção rígida), procura deduzir diretamente da Magna Carta os objetos de proteção penal, que teriam (ademais) caráter vinculante (BIANCHINI, MOLINA e GOMES, 2009, p. 262).

Com base nessa concepção, a Constituição – alicerce de todo o sistema penal – apresenta, expressamente e de forma vinculante, os valores sociais mais importantes para a comunidade, os quais são dotados de dignidade penal e, portanto, merecedores da proteção do Direito Penal. A atividade legislativa, assim, estaria plenamente vinculada às indicações constitucionais relativas à tutela penal, tendo o legislador apenas a função de transportar os valores indicados pelo texto constitucional como bens jurídicos-penais para os tipos penais incriminadores.

Mais uma vez apontando os ensinamentos de Bianchini, Molina e Gomes (2009, p. 263), "A tarefa do legislador, portanto, não seria outra senão a de incorporar ao ordenamento jurídico-penal os valores mais importantes plasmados de modo vinculante na Constituição (Grundnorm)".

Ainda a defender a noção de que apenas os valores indicados pela Constituição podem ser erigidos ao status de bens jurídicos-penais, para a corrente genérica ou flexível, "[…] a norma constitucional não constitui o fundamento obrigatório de dedução lógica dos bens jurídicos (obrigação de criminalização), senão unicamente um marco de referência" (BIANCHINI, MOLINA e GOMES, 2009, p. 264).

Desta forma, na linha de entendimento desta segunda concepção, a Constituição apenas estabelece uma diretriz para que a atividade legislativa seja desenvolvida, inexistindo o caráter vinculante inerente à corrente rígida, o que importa dizer que o legislador possui discricionariedade para selecionar bens jurídicos-penais e, assim, criminalizar condutas, desde que aqueles bens estejam insertos no conjunto de valores expressamente indicados pela Magna Carta.

Portanto, o legislador pode conferir ou não proteção penal aos bens jurídicos indicados pelo texto constitucional, mas não pode inserir no âmbito de proteção do Direito Penal, sob pena de torná-la ilegítima, valores não consagrados pela Constituição.

No entanto, o entendimento majoritário atual acerca da seleção dos bens jurídicos dotados de dignidade penal não mais se orienta pela ideia de que a Constituição é a única fonte de escolha dos valores a serem tutelados pelo Direito Penal. Atualmente busca-se conferir à Carta Magna uma função orientadora desta atividade seletiva, a permitir que bens jurídicos não expressamente consignados em seu texto sejam erigidos à posição de bens jurídicos-penais, desde que, de outro norte, não compreendam valores com ela incompatíveis.

Nessa perspectiva, dissertam Bianchini, Molina e Gomes (2009, p. 266):
A atual e majoritária tendência doutrinária (trend) não se centra, como vimos, na exigência de que o bem jurídico em Direito penal deva ter necessariamente relevância ou plasmação constitucional expressa. A flexibilidade das últimas opiniões constitucionalistas culminou com a formulação da tese de que o bem jurídico-penal conta com legitimidade e validade se não é incompatível com a Constituição (leia-se com o quadro de valores estampados na Constituição).
Com efeito, não se pode conceber um sistema penal absolutamente engessado em razão da possibilidade de apenas selecionar como bens dotados de dignidade penal aqueles expressamente indicados pelo texto constitucional. O Direito Penal é manifestação reflexa da sociedade e dos valores por ela consagrados, cuja evolução e modificação é experimentada a cada momento, em velocidade muito superior à possibilidade de modificação do texto constitucional, de maneira que submeter a tutela penal à prévia alteração de uma Constituição rígida poderia acarretar a sua própria ineficiência. Afinal, segundo aduz Greco (2008, p. 67).

A seleção de bens jurídicos varia de sociedade para sociedade. O critério de seleção será valorativo-cultural, de acordo com a necessidade de cada época, de cada sociedade. Existe uma zona de consenso, comum a toda e qualquer sociedade, no sentido de proteção de determinados bens, com a criação de certas figuras típicas, como é o caso do delito de homicídio, roubo etc. Contudo, existem zonas de conflito, nas quais condutas que são incriminadas em determinada sociedade já não o são em outras, a exemplo do que ocorre com a punição pelo aborto e pelo homossexualismo.

A Constituição, desta feita, apresenta-se como limite negativo para a criminalização de condutas, na medida em que impede a seleção de bens jurídicos-penais conflitantes com o seu quadro axiológico. A realidade social é, na verdade, a fonte primária dos bens jurídicos-penais.

Destarte, nas palavras de Cruz (2008, p. 55),
[...] considerando que o critério de dignidade penal vai inquestionavelmente ligar-se às condições histórico-sociais de uma dada coletividade, o legislador poderá, com fundamento nesse critério, eleger como dignos de tutela penal bens jurídicos que não apresentam relevância constitucional, ou que somente a apresentam por via reflexa, como é o caso dos crimes contra o patrimônio e contra os costumes.
[...] a ordem dos bens tuteláveis não é idêntica à ordem dos valores constitucionais, sendo que a legitimidade da intervenção penal vai depender da circunstância de o reclamo social ser suficientemente intenso.
E segundo entendimento de Prado (1997, p. 78-79),
A dignidade de proteção de um bem se contempla segundo o valor conferido ao mesmo pela cultura; a necessidade de proteção se assenta em sua suscetibilidade de ataque e a capacidade de proteção se constata em relação à própria natureza do bem respectivo. Os bens dignos ou merecedores de tutela penal são, em princípio, os de indicação constitucional específica e aqueles que se encontrem em harmonia com a noção de Estado de Direito democrático, ressalvada a liberdade seletiva do legislador quanto à necessidade.
Em arremate ao aqui exposto, cumpre salientar que o vínculo existente entre Constituição e Direito Penal, a par das limitações ao ius puniendi exaradas pelos princípios constitucionais penais, também se relaciona com o processo de seleção dos valores sociais a serem tutelados pelo sistema penal. Nessa baila, a Constituição se apresenta como limite à escolha dos bens jurídicos-penais, uma vez que impede sejam dotados de dignidade penal valores incompatíveis com o seu quadro axiológico.

Portanto, não são apenas os bens jurídicos indicados expressamente pela Constituição os possíveis destinatários da tutela penal. Também os valores consagrados pela sociedade, ainda que sem previsão constitucional expressa, podem (e devem) ser protegidos pelo Direito Penal, desde que compatíveis com a Constituição.

3. Funções da Teoria do Bem Jurídico


Uma vez inserido o bem jurídico-penal como fundamento de todo o Direito Penal democrático, é inegável a importância que o estudo teórico a seu respeito possui para a Ciência Penal, pois é nesse contexto que exsurge um outro princípio limitador do ius puniendi, qual seja, o princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos. Afinal, retomando o entendimento exposto neste capítulo, a melhor forma de adequar o Direito Penal aos valores consagrados pelo Estado Democrático de Direito é limitar a sua incidência somente às hipóteses em que haja drástica ofensa a um bem jurídico penalmente tutelado, que deve ser reflexo dos valores mais importantes para a convivência social.

Desta feita, segundo Roxin (2006, p. 26), referido princípio, "[...] serve-me, antes de tudo, como linha diretriz político-criminal para o legislador, como arsenal de indicações para a configuração de um Direito Penal liberal e de Estado de Direito".
E consoante preleciona Cruz (2008, p. 45):
O bem jurídico, além de definir a função do Direito Penal, marca os limites da legitimidade de sua intervenção, uma vez que, em um Estado Democrático de Direito, o Direito Penal somente pode interferir na liberdade de seus cidadãos para proteger os bens jurídicos.
Acerca das funções limitadoras oriundas da teoria do bem jurídico (em especial do princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos),Gomes (2002, p. 53-54) salienta que,
como não poderia ser de outra forma, revela o núcleo essencial do denominado princípio da exclusiva proteção de bens jurídicosque, ao lado de tantos outros princípios fundamentais (da materialidade do fato, da ofensividade, da legalidade, da culpabilidade etc.), tem (também) a função de delimitar o ius puniendi estatal.

O princípio em testilha, consequência lógica do modelo de Direito Penal democrático, ao lado dos demais princípios constitucionais penais apresentados alhures, "constitui (mais) uma barreira – um limite – material ao Direito punitivo estatal, que já não está autorizado, por intermédio de uma criminalização, a tipificar meras atitudes morais ou éticas das pessoas (enquanto tais)" (GOMES, 2002, p. 53).

Portanto, a teoria do bem jurídico impõe mais uma barreira para o direito de punir estatal, já que condiciona a atividade legislativa concernente à criação de tipos penais incriminadores à seleção de condutas que causem lesão (ou exponham a perigo concreto) bens jurídicos dotados de dignidade penal.

Nessa perspectiva, decorrem da teoria do bem jurídico, em especial do princípio dela derivado, dois limites relevantes, assim mencionados por Gomes (2002, p. 55):

(a) o primeiro é de natureza indicativa, é dizer, em decorrência do princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, hoje se reconhece (indicativamente) que somente os bens existenciais (individuais ou supra-individuais) mais importantes para o ser humano, é dizer, os que são indispensáveispara o desenvolvimento da sua personalidade, merecem ser contemplados em uma norma como objeto de proteção (e, por conseguinte, da ofensa) penal;

(b) o segundo é de caráter negativo, no sentido de que estamos em condições de afirmar, com boa margem de segurança, ao menos quais bens não podem ser convertidos em objeto da tutela (e da ofensa) penal: a moral, a ética, a religião, a ideologia, os valores culturais como tais etc.

Esses limites impõem ao legislador, portanto, a tarefa de afastar da tutela penal os valores que não podem nela se inserir, tais como a moral, a ética ou a religião, e, ao mesmo tempo, somente direcionar a proteção do Direito Penal aos bens jurídicos mais relevantes à convivência e ao desenvolvimento social pacífico.

Por fim, embora intimamente ligados, deve-se consignar que o princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos não se confunde com o princípio da ofensividade, porquanto, ainda na linha de entendimento esposada por Gomes (2002, p. 42-43),

Para bem individualizá-los cumpre sublinhar desde logo que afunção principal do princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos é a de delimitar uma forma de Direito penal, o Direito penal do bem jurídico, daí que não seja tarefa sua proteger a ética, a moral, os costumes, uma ideologia, uma determinada religião, estratégias sociais, valores culturais como tais, programas de governo, a norma penal em si etc. O Direito penal, em outras palavras, pode e deve ser conceituado como um conjunto normativo destinado à tutela de bens jurídicos, isto é, de relações sociais conflitivas valoradas positivamente na sociedade democrática.

O princípio da ofensividade, por sua vez, nada diz diretamente sobre a missão ou forma do Direito penal, senão que expressa uma forma de compreender ou de conceber o delito: o delito como ofensa a um bem jurídico. E disso deriva, como já afirmamos tantas vezes, a inadmissibilidade de outras formas de delito (mera desobediência, simples violação da norma imperativa etc.)

Destarte, ainda que próximos, não se deve confundir a ofensividade com a exclusiva proteção dos bens jurídicos. Este, relacionado às funções do Direito Penal, impede a criminalização de condutas que não lesem bens jurídicos, enquanto aquele, inserido na teoria do crime, aponta a maneia pela qual se deve compreender o delito.

Em conclusão, o princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos, consectário lógico da teoria do bem jurídico e pressuposto do Direito Penal democrático, apresenta-se, ao lado dos demais princípios constitucionais penais, como limitador do ius puniendi, regendo a seleção dos bens jurídicos a serem tutelados pelo Direito Penal, ao apontar os valores mais caros à sociedade, e condicionando a atividade de criminalização às condutas que ofendam intoleravelmente aqueles bens jurídicos.

Considerações Finais


De tudo se chega ao entendimento de que, uma vez inserto em um Estado Democrático de Direito, o Direito Penal não pode se afastar da função primordial que o legitima, qual seja, a de proteger os bens jurídicos mais caros à sociedade, proporcionando, dessa forma, condições para a coexistência pacífica e equilibrada entre os cidadãos, sob o primado dos valores da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos fundamentais, fixando e reafirmando os valores sociais mais importantes, e atuando como limite ao exercício do ius puniendi.

O bem jurídico se posiciona como um dos fundamentos do Direito Penal democrático, de maneira que o estudo e a compreensão do fenômeno de seleção dos valores sociais a serem tutelados pelo sistema de controle penal se fazem absolutamente oportunos.

Nessa perspectiva, tem-se que a atividade legislativa de produção de tipos penais incriminadores, diretamente balizada e limitada pela teoria do bem jurídico de acordo com os valores abarcados explicita e implicitamente na Constituição Federal, só pode conferir dignidade penal a bens jurídicos compatíveis com a Carta Magna.

Atualmente, portanto, a Constituição Federal não é a única fonte de bens jurídicos-penais, mas exerce uma função orientadora da atividade seletiva estatal, a permitir a tutela de bens jurídicos não expressamente consignados em seu texto, desde que não compreendam valores com ela incompatíveis. Somente assim se faz possível considerar legítima a atuação do Direito Penal na sociedade.

Referências Bibliográficas


BIANCHINI, Alice; MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Direito penal. Introdução e princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. Coleção Ciência Criminais, v.1.
CANTERJI, Rafael Braude. Política criminal e direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
CRUZ, Ana Paula Fernandes Nogueira da. A culpabilidade nos crimes ambientais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
GOMES, Luiz Flávio. Norma e bem jurídico no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. Série "As Ciências Criminais no Século XXI – v. 5".
GRECO, Rogério. Direito penal do equilíbrio: uma visão minimalista do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008.
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Org. e Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

Autor: Vinícius Barbosa Scolanzi 
Revista Jus Navigandi