terça-feira, 28 de novembro de 2017

A influência da recente Lei 13.509/2017 no cotidiano da Defensoria Pública


A comunidade jurídica foi surpreendida com as recentes alterações do Estatuto da Criança e do Adolescente com foco na modificação do procedimento de destituição do poder familiar. Infelizmente, o legislador não é coerente com seu trabalho legislativo e, dois anos após editar um Código de Processo Civil alinhado com a garantia do devido processo legal e do contraditório, caminha na contramão dessa tendência com a simplificação procedimental proposta pelas alterações do ECA. 

 É verdade que a proteção integral prevista na Carta em prol da criança e adolescente visa assegurar que todos os efeitos nefastos de abusos e sofrimentos impostos a essa parcela vulnerável sejam minorados pelos atores do sistema de Justiça. 

 No entanto, enquanto vivermos em um país marcado por desigualdades sociais, não nos parece que a garantia do contraditório efetivo mereça ser pisada, principalmente quando a alteração legislativa acarreta impacto significativo apenas em prejuízo da criança e seus genitores, ao argumento da famosa “celeridade processual”. 

 De início, vale uma breve análise ao novo parágrafo 4º do artigo 158 do ECA quando estatui que: “Na hipótese de os genitores encontrarem-se em local incerto ou não sabido, serão citados por edital no prazo de 10 (dez) dias, em publicação única, dispensado o envio de ofícios para a localização”. 

Uma das principais teses utilizadas pela curadoria especial na defesa do réu revel citado por edital era justamente a nulidade da citação em razão do não esgotamento dos meios de localização (a famosa expedição de ofícios de praxe). De acordo com a nova regra, está o juiz dispensado de fazer diligências nesse sentido, fragilizando ainda mais o contraditório e o devido processo legal. 

 É fato que o público-alvo de ações dessa natureza compreende as famílias menos abastadas da sociedade, que, por falta de assistência e amparo social, não são capazes de propiciar melhores condições de vida às crianças e adolescentes. Desde a falta de vagas em escolas, atendimento médico deficitário e ausência de projetos de inserção social, diversos são os obstáculos impostos a essas famílias.

 E, lamentavelmente, se percebe que o sistema de Justiça para esse grupo é implacável e nem sempre procura compreender a essência do problema familiar. Basta um passeio nas varas de Infância para se perceber a existência de personagens carregados de pré-julgamentos baseados em comparações pessoais, que optam pelo caminho mais fácil e menos tortuoso para si próprios, a separação dos pais e da criança, com sua consequente inserção em família substituta. 

 Notem que a regra do ECA contrasta com o parágrafo 3º do artigo 256 do novo CPC, que exige do juiz esgotar todas as tentativas de localização do réu, inclusive mediante requisição de informações nos cadastros de órgãos públicos e concessionárias de serviços públicos. 

 Acredito, inclusive, que a modificação legislativa vai de encontro ao artigo 7º do novo CPC quando determina que: "É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório". 

 Custo a crer que a expedição de ofícios de informação, especialmente na era digital onde as informações são trocadas em tempo veloz, possa, de algum modo, prejudicar o andamento da relação processual[1]. 

 Por mais que o artigo 227 da CRFB assegure a proteção integral da criança/adolescente, a família também merece a proteção do Estado (artigo 226), de modo que o dispositivo que facilita, desnecessariamente, a não participação dos genitores na relação processual contrasta com o dispositivo constitucional. 

 O que causa a morosidade do processo não é a expedição dos ofícios de praxe, mas os chamados tempos mortos do processo (fases internas de processamento cartorário, demora na apreciação judicial). Querer modificar o regime de citação por edital para acelerar a prestação jurisdicional é igualar-se ao marido traído que se livra do sofá de casa em vez de fazer uma autoavaliação de sua relação conjugal. 

 Outro ponto controverso da nova lei é o parágrafo 4º do artigo 162 do ECA. O dispositivo afirma que: "Quando o procedimento de destituição de poder familiar for iniciado pelo Ministério Público, não haverá necessidade de nomeação de curador especial em favor da criança ou adolescente". 

 Essa, talvez, foi uma das grandes lutas institucionais travadas entre o Ministério Público e a Defensoria Pública, considerando que, se o MP ajuíza a ação de destituição, ele é parte e, obviamente, está deduzindo pretensão que pode contrastar com os interesses da criança/adolescente[2]. 

 Desde outrora já se argumentava que a criança/adolescente não era parte nessa relação processual, o que afastava a intervenção da curadoria especial. Defendia também o Ministério Público que ele estava agindo no interesse da criança, o que também tornava despicienda a atuação da curadoria. Houve julgados do STJ nesse sentido e o Enunciado 22 da Súmula do TJ-RS. 

 Sempre acreditei que a ação de destituição é uma demanda complexa e, por envolver a relação familiar, constituía um litígio que atingia os genitores e a criança. Ora, se a demanda tem o condão de afastar o convívio dos pais com seus filhos, óbvio que a esfera particular da criança será atingida, razão pela qual haveria o interesse da sua participação na demanda. 

 Por mais que possa haver uma opinião ministerial no sentido de orientar a destituição do poder familiar em razão do tratamento conferido pelos pais à criança, inegável que, se a demanda interfere na esfera dos genitores e do infante, há necessidade de um curador especial para defender o seu melhor interesse, posto que a destituição proposta pelo MP pode não ser a melhor solução. 

 Haverá assim um desenho processual em que o Ministério Público autor litiga contra os genitores, postulando a sua destituição do poder familiar, e a figura da criança/adolescente, representada pela curadoria especial, que avaliará se a demanda ajuizada pelo órgão ministerial pode ser acolhida ou deve ser rejeitada, caso em que tutelará pela reinserção familiar, com a consequente improcedência do pedido. 

 Não é possível tratar a criança/adolescente como mero objeto do processo, mas, sim, como verdadeiro sujeito de direitos que possui interesses a serem levados em consideração. Tanto que, a nível jurisprudencial, a atuação da Defensoria Pública, na qualidade de curador especial, foi validada pelo Enunciado 235 da Súmula do TJ-RJ e alguns julgados do STJ - AREsp 298.526-RJ (aqui o tema não era pacífico). 

 Infelizmente, nosso legislador, atendendo interesses duvidosos, não optou pela participação democrática da curadoria especial. No entanto, pelo perfil constitucional da Defensoria Pública, de ser expressão e instrumento do regime democrático (dar voz e representação ao vulnerável) e de proteção dos direitos humanos, pode a Defensoria Pública se insurgir contra o referido dispositivo, embasando sua atuação nos artigos 8º e 9º da Convenção sobre os Direitos da Criança. 

 [1] Na exposição de motivos do projeto que deu ensejo à lei, afirma-se: “Ademais, são propostas mudanças relativas à citação em feitos de destituição do poder familiar que podem trazer ganhos em relação à celeridade e à efetividade processual”.

 [2] A exposição de motivos do projeto de lei demonstra como o Parlamento brasileiro desconhece as regras básicas de Direito Processual Civil, especialmente o conceito de partes, quando em relatório afirma-se que: “Se o procedimento de destituição de poder familiar for iniciado pelo Ministério Público, não haverá necessidade de nomeação de curador especial, já que nesses casos o Ministério Público não é parte e atua obrigatoriamente na defesa dos direitos e interesses de que cuida o ECA”. 


Franklyn Roger Alves Silva 
Revista Consultor Jurídico 
TRIBUNA DA DEFENSORIA

domingo, 15 de outubro de 2017

LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DAS REVISTAS ÍNTIMAS EM PRESÍDIOS

Direitos Fundamentais

Por Ingo Wolfgang Sarlet 

A controvérsia, ainda não inteira e satisfatoriamente equacionada, em torno da legitimidade jurídico-constitucional de revistas íntimas em estabelecimentos prisionais, segue atual e enseja uma série de questionamentos, seja no Brasil, seja em nível de direito estrangeiro e mesmo internacional, ainda que já exista legislação, doutrina e jurisprudência em relativa profusão sobre a matéria. 

De fato, não poderia mesmo ser diferente, visto que em causa está tanto a compreenso e interpretação/aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana e de suas exigências traduzidas em um conjunto de direitos (princípios e/ou regras) fundamentais, quanto a sua confrontação com outros bens jurídicos constitucionalmente tutelados. Até mesmo a querela em torno do caráter absoluto ou relativo da dignidade da pessoa humana acaba por ser ativada nesse contexto, evidenciando ainda mais a complexidade teórica e prática do problema. 

Dada a diversidade de aspectos que poderiam ser aqui suscitados e comentados, calha adiantar que o foco da presente coluna é bem delimitado, ademais de não se pretender propor uma solução fechada, mas sim, colacionar alguns pontos e argumentos para municiar o debate sobre o tema. 

Assim, o que se busca problematizar é em que medida o caso das revistas íntimas em estabelecimentos prisionais se insere no contexto do assim chamado diálogo entre o direito internacional dos direitos humanos e a ordem jurídico-constitucional interna brasileira. 

Sendo mais preciso: partindo-se da premissa de que em matéria de proteção dos direitos humanos e fundamentais há de viger uma lógica não pautada pela hierarquia normativa (embora a orientação atualmente dominante no STF aponte em sentido diverso), mas sim, por uma metódica dialógica, de acordo com a qual se deveria aplicar o parâmetro normativo mais protetivo da(s) pessoa(s) humana(s) afetada(s) e envolvida(s) em determinado caso submetido ao crivo do Poder Judiciário, indaga-se a respeito da consideração (ou não) de precedentes dos órgãos jurisdicionais supranacionais pelos juízes e tribunais nacionais. 

Tal indagação, por sua vez, guarda estreita relação com a avaliação dos níveis de proteção assegurados pelo direito doméstico em face do internacional e da não aplicação no todo ou em parte de decisão (e/ou orientação) de Tribunal Internacional cuja jurisdição foi reconhecida por determinado Estado Constitucional, pelo fato de que os parâmetros do direito interno, em especial dos direitos fundamentais, se revela mais adequado e protetivo em determinadas circunstâncias. 

Se isso é, ou não, o caso quando se trata da legitimidade jurídico-constitucional das revistas íntimas em estabelecimentos prisionais no Brasil é o que se debaterá nesta coluna. 

Note-se que a Constituição Federal, como é o caso no direito comparado e internacional positivo e vinculativo internacional, não dispõe especificamente sobre o tema, de tal sorte que nessa perspectiva o parâmetro tem sido a compreensão e concretização legislativa e jurisprudencial (também pelos órgãos de caráter supranacional, aqui em especial do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos) do princípio da dignidade da pessoa humana e da correlata regra que proíbe todo e qualquer tratamento desumano e degradante, combinado com os direitos humanos e fundamentais à proteção da intimidade e da integridade física e psíquica dos detentos a qualquer título. 

No Brasil também se registram uma séria de atos normativos que regulamentam a matéria, mas em particular importa aqui anotar a Lei Federal 13.271/2016, já em vigência, que, na sua versão aprovada pelo Congresso Nacional, dispunha sobre a proibição de revista íntima de funcionárias nos locais de trabalho e trata da revista íntima em ambientes prisionais". A teor do artigo 1º do referido diploma legal “As empresas privadas, os órgãos e entidades da administração pública, direta e indireta, ficam proibidos de adotar qualquer prática de revista íntima de suas funcionárias e de clientes do sexo feminino”, dispondo, no artigo 2º, que a violação de tal vedação será sancionada da seguinte forma: I - multa de R$ 20 mil ao empregador, revertidos aos órgãos de proteção dos direitos da mulher; II - multa em dobro do valor estipulado no inciso I, em caso de reincidência, independentemente da indenização por danos morais e materiais e sanções de ordem penal. Em relação às revistas íntimas em ambientes prisionais a versão original da Lei previa, no seu artigo 3º, que “Nos casos previstos em lei, para revistas em ambientes prisionais e sob investigação policial, a revista será unicamente realizada por funcionários servidores femininos." 

Tal dispositivo foi objeto de veto presidencial, pelo fato de “A redação do dispositivo possibilitaria interpretação no sentido de ser permitida a revista íntima nos estabelecimentos prisionais. Além disso, permitiria interpretação de que quaisquer revistas seriam realizadas unicamente por servidores femininos, tanto em pessoas do sexo masculino quanto do feminino." Por tal razão, inexiste previsão legal específica em nível nacional que permita ou mesmo proíba expressamente a revista íntima em estabelecimentos carcerários brasileiros, o que, por si só, evidentemente não afasta a possibilidade de se justificar a sua vedação no todo ou pelo menos submetida a determinados critérios com base no marco normativo constitucional e internacional, tampouco impede necessariamente a criação e aplicação de atos normativos infralegais ou mesmo de legislação estadual sobre o tema. 

Nesse contexto, calha invocar a Resolução 5/2014 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que (segue teor literal), “de acordo com regulamentação resolve recomendar que a revista de pessoas por ocasião do ingresso nos estabelecimentos penais seja efetuada com observância do seguinte: 

"Art. 1º. A revista pessoal é a inspeção que se efetua, com fins de segurança, em todas as pessoas que pretendem ingressar em locais de privação de liberdade e que venham a ter contato direto ou indireto com pessoas privadas de liberdade ou com o interior do estabelecimento, devendo preservar a integridade física, psicológica e moral da pessoa revistada. 

Parágrafo único. A revista pessoal deverá ocorrer mediante uso de equipamentos eletrônicos detectores de metais, aparelhos de raio-x, scanner corporal, dentre outras tecnologias e equipamentos de segurança capazes de identificar armas, explosivos, drogas ou outros objetos ilícitos, ou, excepcionalmente, de forma manual. 

Art. 2º. São vedadas quaisquer formas de revista vexatória, desumana ou degradante. 

Parágrafo único. Consideram-se, dentre outras, formas de revista vexatória, desumana ou degradante: 
I – desnudamento parcial ou total; 
II – qualquer conduta que implique a introdução de objetos nas cavidades corporais da pessoa revistada; 
III – uso de cães ou animais farejadores, ainda que treinados para esse fim; IV – agachamento ou saltos. 

Art. 3º. O acesso de gestantes ou pessoas com qualquer limitação física impeditiva da utilização de recursos tecnológicos aos estabelecimentos prisionais será assegurado pelas autoridades administrativas, observado o disposto nesta Resolução. 

Art. 4º. A revista pessoal em crianças e adolescentes deve ser precedida de autorização expressa de seu representante legal e somente será realizada na presença deste”

Além disso, conforme dados do Conselho Nacional de Justiça — colacionados em decisão da 3ª Câmara Criminal do TJ-RS no voto do Relator Desembargador Diógenes Hassan Ribeiro — [1], diversos estados já vedaram práticas de revista vexatória, como a “Paraíba (Lei Estadual 6.081/2010), Rio de Janeiro (Resolução 330/2009 da Secretaria de Administração Penitenciária), Rio Grande do Sul (Portaria 12/2008 da Superintendência dos Serviços Penitenciários), Santa Catarina (Portaria 16/2013 da Vara de Execução Penal de Joinville), São Paulo (Lei Estadual 15.552/2014), Espírito Santo (Portaria 1.575-S, de 2012, da Secretaria de Estado da Justiça), Goiás (Portaria 435/2012 da Agência Goiana do sistema de Execução Penal) e Mato Grosso (Instrução Normativa 002/GAB da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos)”[2]. 

Ademais disso, no mesmo julgado e no mesmo voto referido, foram invocados precedentes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (caso 10.506), que dizem respeito a “revisões vaginais rotineiras das mulheres que visitam a Unidade 1 do Serviço Penitenciário Federal” na Argentina. Nas suas conclusões e tomando aqui de empréstimo a citação feita pelo Desembargador Diógenes Hassan Ribeiro, a Comissão anotou o que segue: 

“93. Contudo, a Comissão deseja salientar que este caso representa um aspecto íntimo especial da vida privada de uma mulher e que o procedimento em questão, seja a sua aplicação justificável ou não, pode provocar angústia e vergonha profunda em quase todas as pessoas ao mesmo submetidas. Ademais, a aplicação do procedimento a uma menina de 13 anos pode resultar em grave dano psicológico, difícil de avaliar.  A Senhora X e sua filha tinham direito ao respeito de sua intimidade, dignidade e honra ao procurarem exercer o direito à família, apesar de um dos seus membros estar detido.Tais direitos só deveriam ter sido limitados no caso de uma situação muito grave e em circunstâncias muito específicas e, nesse caso, com o estrito cumprimento, pelas autoridades, das regras anteriormente definidas para garantir a legalidade da prática”. 

 À vista do sumariamente exposto o que se pretende aqui controverter é se a normativa referida e o precedente da Comissão Interamericana desautorizam qualquer modalidade de revista íntima em estabelecimentos prisionais no Brasil ou se exceções são admissíveis. 

Note-se que o precedente da Comissão não afasta a possibilidade da revista em determinadas circunstâncias (em caráter excepcional), mas refere-se a revistas gerais realizadas indiscriminadamente sem fundamento concreto em uma suspeita determinada e motivada por razões de segurança e necessidade, devendo observar os critérios da razoabilidade e proporcionalidade (a Comissão refere os dois critérios). Além disso, cuidava-se, no caso submetido à Comissão, de revista íntima realizada em menina de 13 anos, dependente da decisão adotada (no sentido de consentir com a intrusão) pela sua representante legal que a acompanhava na ocasião. Em síntese conclusiva, a Comissão estabeleceu que a) a legitimidade de uma inspeção vaginal deve ser absolutamente necessária para alcançar o objetivo legítimo no caso específico; b) não deve existir nenhuma medida alternativa; c) em princípio deve ser autorizada por mandado judicial e d) deve ser realizada por profissionais da saúde. 

O problema que aqui se coloca é, portanto, o de avaliar, com base na articulação necessária (e devida) dos parâmetros do sistema internacional (em especial do Interamericano) de Direitos Humanos e mediante uma interpretação sistemática da ordem jurídico-constitucional interna brasileira não apenas se a revista íntima em especial em pessoas do sexo feminino pode ser realizada e, caso afirmativa a resposta, em que circunstâncias. 

Antes de avançar, calha sublinhar que de acordo com reiterada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça a revista íntima para impedir o ingresso de entorpecentes e outros objetos que possam colocar em risco a segurança é constitucionalmente legítima. 

Nesse sentido transcreve-se a ementa que segue: 

 PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. NÃO CABIMENTO. NOVA ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL. ART. 33, CAPUT, C.C. ART. 40, INCISO III, DA LEI Nº 11.343/2006. INGRESSO DE ENTORPECENTES EM ESTABELECIMENTO PRISIONAL. ILICITUDE DA PROVA DECORRENTE DE REVISTA ÍNTIMA. INOCORRÊNCIA. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. III - Não se configura a ilicitude da prova decorrente de revista íntima na qual se encontraram entorpecentes no corpo de denunciada, se tal procedimento não excedeu os limites do objetivo do ato, que é a garantia da segurança pública quando da entrada de visitantes em estabelecimentos prisionais. Em outras palavras, é possível a mitigação do direito à intimidade da pessoa, como na espécie, em benefício da preservação de outros direitos constitucionais igualmente consagrados, uma vez que não há, no ordenamento jurídico-constitucional, direitos fundamentais de caráter absoluto (MS n. 23.452/RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 12/5/2000). IV - O direito à intimidade, portanto, não pode servir de escudo protetivo para a prática de ilícitos penais, como o tráfico de entorpecentes no interior de estabelecimentos prisionais, notadamente quando, em casos como o presente, há razoabilidade e proporcionalidade na revista íntima, realizado por agente do sexo feminino e sem qualquer procedimento invasivo (precedente). (HC 328.843/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 15/10/2015, DJe 09/11/2015).

Em passagem do voto do ministro Felix Fischer no precedente acima referido, colaciona-se que:  

“Ademais, deve-se ressaltar que o direito constitucional tido por violado, na espécie, apenas poderia ser fundamento para o reconhecimento da ilicitude da prova obtida, na hipótese em que tal violação fosse grave o suficiente a fim de invocar a garantia constitucional, o que, da análise dos autos, não se verifica. [...] Contudo, entendo que tal não é a hipótese, em que, ao que se tem dos autos, "não houve invasão do corpo, mas imediata retirada da droga pela própria ré da vagina, quando constatadas as evidências da ocultação" (fl. 154), sendo a revista, inclusive, tendo sido realizada por agente do sexo feminino”. 

Considerando-se que o precedente da Comissão Interamericana não veda em si a realização de revistas íntimas, desde que excepcionais e submetidas a rigorosos critérios, o ponto nodal da controvérsia é em si o de definir em quais casos uma revista dessa natureza é admissível e como deverá ser o procedimento adotado para que seja juridicamente legítima e não venha a ensejar eventual ilicitude da prova obtida ou implicar o sancionamento dos agentes responsáveis por sua realização. 

Como é curial — e a própria Convenção Americana de Direitos Humanos assim como a Comissão e a Corte Interamericana assim o reconhecem — que mesmo os direitos à intimidade e privacidade, bem como os direitos à honra e à integridade física e psíquica não tem caráter absoluto, resta saber quando uma revista íntima estará ultrapassando os parâmetros de uma restrição legítima de direitos e importando em sua violação, em especial se não estará sendo também violada a própria dignidade da pessoa humana, em se configurando a figura do tratamento desumano ou degradante. 

Para o STJ tal não será o caso (ao menos é o que desponta do julgado colacionado) quando se tratar de verificar (a partir de fundada suspeita a partir de elementos concretos) da identificação e retirada de entorpecentes para coibir o tráfico de drogas nos estabelecimentos prisionais, não se cuidando de revista genérica ou mesmo aleatória e justificada por fins constitucionalmente legítimos. 

Da mesma forma, entende o STJ que não existe constrangimento ilegítimo que possa configurar violação da dignidade humana quando a revista é realizada por agentes femininos e é a própria revistada que retira, sem intervenção de terceiros, os objetos de sua cavidade vaginal. Além disso, quanto a necessidade de se utilizar outros meios menos invasivos (em respeito aos critérios da proporcionalidade) quando a fundada suspeita decorre precisamente da passagem por scanner e/ou detector de metais, a revista íntima (ainda mais quando não realizada por terceiros) estaria respeitando tanto os parâmetros supranacionais quanto o marco normativo interno. 

É de se acrescentar, todavia, que a o precedente do STJ deveria pelo menos — em se adotando entendimento favorável à realização excepcional e respeitados os limites estabelecidos na decisão — ser complementado no que diz com os requisitos para a aferição da legitimidade das revistas íntimas. Em especial há de ser consignado que no caso de recusa da mulher em concordar com a revista e retirar ela própria eventual objeto de sua cavidade vaginal — a retirada por terceiros deveria então ser submetida ao crivo da autoridade judicial e realizada por profissionais da saúde, tal como determinado pela Comissão Interamericana. 

O que se pode afirmar nessa quadra, é que o problema das revistas íntimas assume uma dimensão cada vez mais relevante inclusive pelo número de incidentes onde é feita no Brasil, de modo que urge avançar no equacionamento prudencial da questão, tanto no que diz com o aperfeiçoamento da legislação e estabelecimento de critérios (em nível nacional) legais vinculativos e razoáveis, quanto no que concerne a medidas de caráter pedagógico envolvendo tanto a população carcerária mas em especial a formação do pessoal que trabalha nos estabelecimentos prisionais. 

Além disso, há que aparelhar tais estabelecimentos de modo a viabilizar que as revistas sejam feitas efetivamente em caráter excepcional e de modo a cumprir com tais parâmetros. Quanto ao Poder Judiciário, cujo dever constitucional é o de assegurar a efetiva proteção e respeito aos direitos e garantias fundamentais, ainda mais quando em causa a dignidade da pessoa humana, espera-se que avance quanto ao tema e estabeleça uma jurisprudência constitucional e convencionalmente adequada e que faça jus ao seu papel de guardião da Constituição. 

Que não é nesta coluna que se fará um inventário completo das questões que o tema desafia e muito menos propor soluções fechadas é de ser novamente enfatizado. O propósito foi chamar a atenção dos leitores sobre o problema e provocar a reflexão. 
_________________________________________
[1] Apelação Crime 0018164-13.2017.8.21.7000, Rel. Des. Diógenes Hassan Ribeiro, julgada em 03.05.2017
[2] Disponível em http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/62079-nove-

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quinta-feira, 12 de outubro de 2017

ADOÇÃO TARDIA: TRIBUNAIS DÃO VISIBILIDADE A CRIANÇA E A ADOLESCENTE

O Primeiro Caso de Adoção no Brasil aos 18 anos


O menino Thalisson, de 11 anos, que vive em um abrigo no Espírito Santo, interrompe a brincadeira, olha para a câmera e, sem hesitar, faz um pedido: “Eu queria ter uma família, ser adotado, dar amor, carinho e respeito. Você quer ser minha família?”. 

 O vídeo faz parte da campanha “Esperando por você” do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES). Será divulgado a partir de sexta-feira em diversos shoppings da região metropolitana de Vitória, dentro de uma estratégia de comunicação que envolve a produção de outros 20 videos pela justiça para estimular a adoção de crianças.

 Ações como essa eram impensáveis até poucos anos atrás, já que a exposição dessas crianças na sociedade sempre foi considerada um tabu. Agora, é uma iniciativa cada vez mais presente na Justiça de todo o país. Com isso, houve resultados significativos para inserir em uma família aquelas crianças que não tinham perspectiva alguma de serem adotadas, em geral pela idade avançada ou por terem alguma deficiência. 

Diversos Tribunais de Justiça (TJs) como os dos estados de Pernambuco, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Rondônia, Santa Catarina, entre outros, aderiram a ideia de que crianças e adolescentes devem ser mostrados e podem atuar na tentativa da própria adoção. 

O caso pioneiro e responsável por inspirar os demais ocorreu em 2015, quando os jogadores do Sport Club do Recife, time de futebol da capital pernambucana, entraram em campo para a partida contra o Flamengo de mãos dadas com crianças que vivem em abrigos em Recife à espera de adoção. 

A ação, que também contou com exibição de um vídeo das crianças na Arena Pernambuco antes do jogo, fez parte da campanha “Adote um pequeno torcedor”, desenvolvida por meio de uma parceria entre a 2ª Vara da Infância e Juventude da Capital, o time Sport Club e o Ministério Público de Pernambuco. 

 As crianças e adolescentes se apresentavam, em vídeo, e contavam um pouco de sua vida, seus gostos e seu sonho de ter uma família. Como resultado, no dia seguinte ao jogo, a Vara de Infância e Juventude de Recife, o juiz Élio Braz, titular da 2ª Vara da Infância e Juventude da capital pernambucana, que organizou a campanha, recebeu dezenas de ligações de famílias de diversas regiões do país interessadas em adotar aqueles jovens. Assim, foram adotados 20 dos 43 adolescentes que participaram da campanha. 

Esse é meu filho! 
Willian, um dos adolescentes, foi adotado por uma família de Belo Horizonte/MG aos 18 anos – a mãe relatou ao juiz Élio que, após ver a imagem do garoto na televisão, teve a certeza: esse é meu filho! “A campanha ensinou que os jovens precisam ser protagonistas no processo de adoção, precisam ter voz, como determina o artigo 100 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O jovem em abrigo não precisa ficar escondido, não cometeu nenhum delito, não está cumprindo pena”, disse o juiz Élio. 

Para ele, como a responsabilidade sobre esses jovens é de toda a sociedade, e o juiz tem a obrigação de mostrar essa realidade para a população. Essas crianças e adolescentes que participaram da campanha não haviam encontrado pretendente à adoção pelas vias tradicionais, em função do perfil publicado em cadastros oficias. 

A situação comum em diversas regiões do país em função da incompatibilidade entre o perfil das crianças e o desejado pelos país: em Pernambuco, por exemplo, cerca de mil pretendentes no cadastro, mas não demonstram interesse em adotar as 300 crianças que estão disponíveis. 

Para o juiz Élio, no entanto, a campanha demonstrou que é possível ocorrer uma mudança de paradigma, e que tabus e preconceitos em relação à adoção tardia, como o de que a criança já tenha um “comportamento viciado”, podem ser superados na sociedade. “Qual é mesmo o adolescente que não precise de uma atenção maior dos pais?”, indaga o magistrado. 

Jiló e pimenta 
Inspirados pelo bom resultado da campanha do Tribunal de Justiça de Pernambuco, a Comissão Estadual Judiciária de Adoção (CEJA) do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) preparou a campanha “Esperando por você”, com objetivo de incentivar a adoção de 70 das 140 crianças que estão para adoção no estado, mas não tem nenhuma perspectiva de um pretendente. 

A equipe de comunicação do tribunal realizou vídeos e fotos dessas crianças e adolescentes que poderão ser vistos no no canal de youtube do tribunal e em exposições nos shoppings de cederam seu espaço em Cariacica, Vila Velha, Serra, regiões metropolitanas da grande Vitória. 

A exposição terá duração de uma semana em cada shopping e contará com um servidor do tribunal que ficará à disposição para explicar sobre os passos necessários para a adoção legal, além de conversar sobre mitos relacionados à adoção tardia. Inicialmente, a campanha envolve 20 crianças, todos já com alguma idade ou com alguma condição específica que dificulte a adoção, como uma deficiência física ou intelectual. 

“Eu gosto de pipa, videogame, sou bom estudante na escola, o terceiro melhor...e gosto de jiló, arroz, feijão, macarrão e pimenta”, dispara Thalisson, de 11 anos, em um dos vídeos, em que aparece cozinhando na instituição de acolhimento.

Já Kauan, de seis anos, corre e brinca com um cuidador que o define como um menino carinhoso, alegre e de uma vitalidade enorme, sempre disposto a dar um abraço. “Ele tem algumas limitações, mas é cheio de possibilidades e de desejo de viver em família. Quer ser amado e amar, só precisa de uma oportunidade. Para onde for, vai levar muita luz com ele”, diz a psicóloga Edivânia Pilon. Kauan passou praticamente a vida toda no abrigo e possui a Síndrome Alcoólica Fetal, um transtorno relacionado ao consumo excessivo de álcool na gravidez. 


 O site da Campanha do TJES estará no ar a partir de 15/5 com informações mais detalhadas das crianças participantes. De acordo com o psicólogo do CEJA do tribunal capixaba, Helerson Elias da Silva, nos Estados Unidos são comuns esse tipo de campanha de adoção. “Havia muito tabu em relação a mostrar esses jovens”, diz Helerson. Mesmo antes da campanha ser lançada, algumas pessoas visualizaram os vídeos no site do tribunal e já fizeram contato com interesse em adotar as crianças. 

Por que não eu? Chamada de "O que os olhos veem o coração sente", a exposição retratou a rotina de famílias com filhos adotivos e de crianças que estão aptas à adoção, com objetivo de pôr fim ao anonimato de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. 

Inspirados, também, pela campanha do Sport Club Recife, foi aberta, em janeiro, uma exposição fotográfica para dar visibilidade às crianças que esperam pela adoção no Mato grosso – a exposição começou em um shopping de Várzea Grande e seguiu para outros municípios. 

No Mato Grosso há 456 crianças e adolescentes que vivem em instituições de acolhimento, sendo que 62 deles estão aptos à adoção. 

A iniciativa da exposição fotográfica é da Associação Mato-grossense de Pesquisa e Apoio à Adoção (Ampara), da Coordenadoria da Infância e Juventude (CIJ) da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Mato Grosso (OAB-MT) e do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedca), com apoio do Poder Judiciário Estadual. 


Fonte: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84763-adocao-tardia-tribunais-dao-visibilidade-a-crianca-e-adolescente

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Sensacionalismo, pressa ou ignorância – a volta da cura gay



Até que ponto cabe à justiça deliberar sobre as práticas de saúde? 

Talvez você já tenha lido as manchetes dizendo que a justiça autorizou os psicólogos a tratarem a homossexualidade como doença. Não a colocaria na categoria de fake news (notícia falsa), mas é claramente junk news – a manchete simplifica muito a notícia, passando uma ideia superficial – e enviesada. Como ela tem aquele jeitão que rende muitos likes e compartilhamentos, não descarto que seja propositalmente assim. Mas como também o assunto é complexo, requerendo um aprofundamento que tomaria um tempo que nem todo site de notícia tem, podemos dar o benefício da dúvida – talvez ela só tenha sido escrita às pressas. Ou vai ver que ninguém entende nada do que está falando, o que é sempre uma possibilidade. 

Para compreender o caso: em 1999 o Conselho Federal de Psicologia (CFP) publicou uma resolução dizendo, essencialmente, que “os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados. Parágrafo único – Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”

O objetivo era basicamente proibir psicólogos de oferecerem cura para a homossexualidade, que de resto nem é doença. Agora um juiz do Distrito Federal julgou uma ação popular que pretendia derrubar essa resolução. Em sua sentença, contudo, ele manteve a resolução. 

Quem lê-la verá que o juiz afirma com todas as letras que “a homossexualidade constitui variação natural da sexualidade humana, não podendo ser, portanto, considerada como condição patológica”. (leia: http://emais.estadao.com.br/blogs/daniel-martins-de-barros/wp-content/uploads/sites/168/2017/09/Decis%C3%A3o-Liminar-RES.-011.99-CFP.pdf). 

Apesar disso, diz não se pode “privar o psicólogo de estudar ou atender àqueles que, voluntariamente, venham em busca de orientação acerca de sua sexualidade, sem qualquer forma de censura, preconceito ou discriminação”. Mantém, portanto, a resolução, mas determina que o CFP “não a interprete de modo a impedir os psicólogos de promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual(…)”. 

Resumindo: homossexualidade não é doença, os psicólogos eram proibidos de afirmar o contrário e continuam sendo proibidos. Também continuam sem permissão de divulgar tratamentos para curar gays. Só não estão mais proibidos de ajudar, forma privada, homossexuais que os procuram livremente querendo deixar de ser homossexuais. 

O pomo da discórdia é: o psicólogo poderia ou não tratar alguém que o busca para deixar de ser gay? O CFP entende que não, porque isso estigmatiza a homossexualidade como doença. 

O juiz entende que sim, porque cada um é livre para fazer o que bem entender, e se a pessoa quer mudar sua orientação sexual, deixemos seu psicólogo tentar. Eu mesmo fico dividido, mas por motivos bem diferentes. 

Por um lado acho que nenhum psicólogo deveria acolher essa demanda de seus pacientes, porque simplesmente não há evidências científicas que sustentem sua eficácia. Mas por outro, se a gente fosse proibir os profissionais de saúde de oferecer tratamentos não baseados nas mais sólidas evidências científicas, homeopatia, acupuntura, florais de Bach, quiropraxia, e a própria psicanálise deveriam ser banidas. Então deixo nas mãos do leitor. 

Quem chegou até aqui deve ter percebido que, muitas vezes, ao nos aprofundarmos numa questão complexa e com tantas nuances torna-se mais difícil – e não mais fácil – firmar uma posição. 

É muito mais simples compartilhar uma manchete nas redes sociais xingando-a ou a aplaudindo quando não sabemos bem do que se trata. 

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Por Daniel Martins de Barros
Psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPq-HC), onde atua como coordenador médico do Núcleo de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica (Nufor). Doutor em Ciências e bacharel em Filosofia, ambos pela Universidade de São Paulo (USP).

Disponível em: http://emais.estadao.com.br/blogs/daniel-martins-de-barros/sensacionalismo-pressa-ou-ignorancia-a-volta-da-cura-gay/

sexta-feira, 26 de maio de 2017

25/05 Dia da Adoção: Mais de 5,5 mil crianças aguardam pela adoção no Brasil

Gerando AMOR!

Exigências dos candidatos dificultam a adoção no Brasil. 

Apesar de ser um dos países mais miscigenados do planeta, o Brasil ainda não aceita as diferenças. Prova disso é a dificuldade de efetivação nos processo de adoção. Mesmo que existam mais pretendentes do que crianças disponíveis, a adoção no Brasil é dificultada pelas restrições impostas pelas pessoas que desejam adotar. 

 Como funciona a adoção no Brasil 

O primeiro passo para concretizar o sonho da adoção deve ser dado no núcleo familiar. O casal ou a pessoa que deseja adotar uma criança precisa calcular e planejar todos os detalhes que o ato envolve. 

É necessário pensar na qualidade de vida e segurança, nos possíveis acompanhamentos que a criança possa precisar e na própria capacidade de assumir a responsabilidade por uma outra vida. Contudo, isso pensado, é hora de iniciar a primeira etapa do processo de adoção no Brasil - a apresentação para a justiça. Procure uma Vara da Infância e Juventude e o Serviço Social. É lá que você deverá inscrever-se no CPA - Cadastro de Pretendentes à Adoção. É tempo também de entregar uma documentação inicial, por isso tenha todos os documentos preparados no dia. 

Você precisará apresentar ao Serviço Social comprovantes de residência e renda, atestados negativos de antecedentes criminais, certidões de nascimento ou casamento e cópias de RG e CPF. Os papéis são encaminhados ao setor técnico, que agenda entrevistas com psicólogos e assistentes sociais. 

O laudo é enviado ao Ministério Público, pois o sistema de adoção no Brasil exige liberação judicial. Com a habilitação finalizada, o pretendente entra para o banco de cadastro nacional e fica em uma lista de espera, até que uma criança com as exigências exigidas seja liberada processo adotivo. 

Os problemas da adoção no Brasil É difícil de acreditar que um país que possui cerca de 6 vezes mais pretendes à adoção do que crianças disponíveis sofra com problemas no processo adotivo. Mas é isso que ocorre no Brasil. “O que acontece é que a maioria dessas crianças disponíveis não são mais bebês, e a procura maior no país ainda é por bebês da cor branca”, comenta a psicóloga Rafaela Monteiro. Mas bebês da cor branca não são a maioria. 

As crianças disponíveis para a adoção no Brasil são em sua maioria pardas ou negras, além dos indígenas, que constituem uma minoria. Segundo o relatório elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça, das 5.544 crianças disponíveis no sistema brasileiro, 1.017 são negras e 2.668 são pardas. Apenas 1.804 são brancas.

Porém o mesmo relatório aponta que dos 32.033 pretendentes cadastrados, 9.083 aceitam somente crianças brancas. E, se não bastassem as exigências de raça, ainda há outros pontos que dificultam a adoção. “Crianças doentes também entram nessa perspectiva, pois essas são as que têm menos chances de serem adotadas”, afirma Rafaela. 

Outras características procuradas 

A idade, as ocorrências de doenças ou vícios por parte dos pais biológicos e o sexo são também bastante restritivos. Cerca de 10 mil pretendentes à adoção no Brasil só aceitam crianças do sexo feminino, por exemplo. Além disso, crianças que tenham mais de 6 anos são menos propensas a serem adotadas, sendo que o maior índice de disponibilidade está em adolescentes de 16 anos. 

“Uma nova cultura de adoção vem sendo difundida após o estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Onde a busca é no sentido de encontrar famílias para as crianças, e não o contrário. Muito ainda tem que ser feito - a caminhada é longa. A esperança que temos é que um dia isso mude e que nenhuma criança cresça em uma instituição, longe de uma família”, explica a psicóloga.

Adoção Monoparental

A Família Monoparental advinda da adoção é um ato de amor onde um homem ou uma mulher adota uma criança, construindo com ela laços afetivos. Tem expressa previsão legal, pois a pessoa pode adotar independentemente do seu estado civil.

 Adaptando-se a essa realidade, a nova lei de adoção, promulgada em 2009, trouxe em seu artigo 42, a possibilidade de adoção por pessoas maiores de 18 (dezoito) anos de idade, independentemente de seu estado civil. Este foi um grande avanço jurídico para a área do direito de família, uma vez que aumentou as possibilidades de colocação do menor em uma família definitiva, necessidade latente da nossa sociedade, onde as crianças e os adolescentes abandonados costumam permanecer por um período, excessivamente, longo nas casas de acolhimento institucional.


Mesmo com todo o amparo legal e a necessidade social, ainda hoje a pessoa solteira que deseja adotar uma criança ou adolescente encontra obstáculos. O paradigma que existe em relação às famílias tradicionais ainda é muito forte, alguns tabus e preconceitos ainda imperam, porém não devem ser mais fortes que a necessidade real que existe de pessoas capacitadas a adotar, cuidar e amar tantas crianças que passam anos intermináveis em casas de acolhimento.


Muitas pessoas não podem ou não querem manter um vínculo conjugal, porém isso não as impossibilita de tornarem-se pai ou mãe. As exigências que devem ser observadas por quem deseja adotar uma criança, como a estabilidade financeira, um ambiente hábil para receber um novo membro, entre outras, podem perfeitamente serem preenchidas por somente uma pessoa que deseje constituir uma família através da adoção.


Os operadores do direito devem lutar para dirimir os paradigmas existentes e buscar defender os interesses do menor, que certamente não é o de crescer dentro de lares de acolhimento onde é impossível receber o amor, a atenção e o carinho que somente uma família lhes poderá dar.

Fontes:
http://www.oestadoce.com.br/opiniao/adocao-monoparental
https://juridicocerto.com/artigos/mairaadvogada/familia-monoparental-557

 

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

A mitologia da Defensoria Pública e a violação da Lei de Execução Penal: algo sobre a superficialidade universitária e seus nefastos efeitos


Texto dedicado aos defensores públicos Fernanda Mambrini Rudolfo (SC), Roger Moreira (AM), Arthur Macedo (AM) e ao advogado Glen Wilde (AM) – estes últimos “combatentes” dos direitos humanos na tragédia carcerária de Manaus/AM (Jan. 2017) –, para, na pessoa deles, homenagear também todos os que se preocupam com a violação dos direitos humanos nos cárceres do Brasil.





 O mês de janeiro de 2017 foi marcado por tragédias carcerárias maculadoras da história da Execução Penal no Brasil. Nesse dramático cenário, o estudo sobre o direito da Execução Penal e sobre alternativas penais é deveras importante – recentes equívocos da administração carcerária demonstram bem tal importância.

 Em janeiro de 2017, a defensora pública em Santa Catarina, Fernanda Mambrini Rudolfo, no artigo “Defensoria Pública e o enfrentamento à síndrome do micropoder”, queixou-se do desconhecimento e da violação das prerrogativas do defensor público incidentes no cenário carcerário. Sim. Por desconhecimento dos poderes-deveres legais do defensor público, impediu-se atuação defensorial catarinense no sentido de reforçar a democracia e os direitos humanos no cenário do cárcere.

 Ao norte do país, o texto de Mambrini Rudolfo se revelou uma crítica necessária e profética: no dia 31 de janeiro, em Manaus/AM – cidade na qual foi registrado o primeiro grande massacre carcerário no primeiro dia do ano novo –, o defensor público especializado na defesa dos direitos humanos, Roger Moreira de Queiroz, foi “barrado” em sua pretensa participação garantista na “varredura” realizada na Cadeia Pública local (vide aqui).

 As questões se apresentam:

 – As autoridades que, de sul a norte, vetaram o acesso da Defensoria Pública ao sistema carcerário (des)conhecem as atribuições e prerrogativas legais do defensor público no sistema carcerário? – Acaso não saberiam que a Lei permite ao defensor público ingressar no estabelecimento prisional, inclusive sem prévio agendamento? É o que dispõe, por exemplo, a LC n. 80/1994, nos seguintes dispositivos: art. 4º-A, VII[1]; Art. 44, VII[2]; art. 89, VII[3]; art. 128, VI[4].

 – Acaso não saberiam que o defensor público tem voz e voto nos Conselhos Penitenciários? E que o Estado Defensor deve atuar e ter acesso a todas as dependências do estabelecimento prisional? Vide, por exemplo, LC n. 80/1994, art. 108, inc. II e IV.

 – Acaso não saberiam que a Defensoria Pública é órgão de execução penal, tais como são os juízes e os membros do Ministério Público? Nesse sentido, a solar clareza da Lei de Execução Penal – LEP (Lei n. 7.210/1984), art. 61, inc. II, III e VIII[5].

 – Acaso não saberiam que é dever defensorial visitar tais estabelecimentos e até mesmo requerer sua interdição em caso de violação de direitos? Com tal razão, a LEP, art. 81-B, V e VI[6].

 – Acaso não sabem que é missão legal e constitucional da Defensoria Pública tutelar os direitos humanos e segmentos vulneráveis necessitados de proteção frente ao Estado? Em tal linha de raciocínio, a LC n. 80, art. 4º-A, XI[7] e a Constituição, art. 134[8].

 Com efeito, o desrespeito às funções legais e constitucionais da Defensoria Pública decorre primordialmente em razão da superficialidade com a qual a instituição ainda é tratada no meio acadêmico. Não raras vezes, o estudo universitário sobre Defensoria Pública é limitado à percepção de uma “só” das funções da Defensoria Pública – a mais (re)conhecida: o mister de exercer função processual representativa similar à função do advogado privado, que a parte não teve condições financeiras de contratar.

 Geralmente, a aula jurídica – seja de Direito Processual (civil ou penal), ou ainda de Direito Constitucional (sobre funções essenciais à Justiça) –, na qual os professores citam a Defensoria Pública é marcadamente resumida da seguinte maneira: logo após mencionar o importante papel do advogado privado, surge o defensor público com função resumida ao atuar representativo de “advogado do pobre” (“necessitado econômico”), caso este não possa pagar um causídico. Em polo diverso a tais profissionais, os reais estudiosos do Estado Defensor – em seus aspectos históricos, sociais, legais e constitucionais –, sabem que a missão defensorial extrapola o referido atuar e surgem pontualmente enquanto foco de resistência à superficialidade…

 Tragicamente, o reducionismo narrado e repetido por décadas produziu professores e outros profissionais desconhecedores da Defensoria Pública em sua extensão, os quais lamentavelmente correm o risco de propagarem em sua prática uma superficial mitologia defensorial, a mesma que vitimou a Lei, a Constituição e os direitos humanos quando foi vetado o ingresso de defensores públicos em estabelecimentos prisionais.

 Que os mitos superficiais se desfaçam e o conhecimento se perfaça, pois – enfim –, o “senso comum teórico” precisa dar lugar à Ciência Jurídica e à prática social renovadora.

 Notas e Referências:

 [1] LC n. 80/1994, “Art. 4º-A São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: (…) VII – comunicar-se, pessoal e reservadamente, com seus assistidos, ainda quando esses se acharem presos ou detidos, mesmo incomunicáveis, tendo livre ingresso em estabelecimentos policiais, prisionais e de internação coletiva, independentemente de prévio agendamento.

 [2] LC n. 80/1994, “Art. 44. São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública da União: (…) VII – comunicar-se, pessoal e reservadamente, com seus assistidos, ainda quando esses se acharem presos ou detidos, mesmo incomunicáveis, tendo livre ingresso em estabelecimentos policiais, prisionais e de internação coletiva, independentemente de prévio agendamento;”

 [3] LC n. 80/1994, “Art. 89. São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios: (…) VII – comunicar-se, pessoal e reservadamente, com seus assistidos, ainda quando esses se acharem presos ou detidos, mesmo incomunicáveis, tendo livre ingresso em estabelecimentos policiais, prisionais e de internação coletiva, independentemente de prévio agendamento;”

 [4] LC n. 80/1994, “Art. 128. São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública do Estado, dentre outras que a lei local estabelecer: (…) VI – comunicar-se, pessoal e reservadamente, com seus assistidos, ainda quando estes se acharem presos ou detidos, mesmo incomunicáveis, tendo livre ingresso em estabelecimentos policiais, prisionais e de internação coletiva, independentemente de prévio agendamento;

 [5] LEP, “Art. 61. São órgãos da execução penal: (…) II – o Juízo da Execução; III – o Ministério Público; (…) VIII – a Defensoria Pública.”

 [6] LEP, “Art. 81-B. Incumbe, ainda, à Defensoria Pública: (…) V – visitar os estabelecimentos penais, tomando providências para o adequado funcionamento, e requerer, quando for o caso, a apuração de responsabilidade; VI – requerer à autoridade competente a interdição, no todo ou em parte, de estabelecimento penal”.

 [7] LC n. 80/1994, “Art. 4º-A São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: (…) XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado;”

 [8] CRFB/88, “Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.”




Texto: Maurilio Casas Maia é Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e doutorando em Direito Constitucional e Ciência Política (UNIFOR). Pós-Graduado lato sensu em Direito Público: Constitucional e Administrativo; Direitos Civil e Processual Civil. Professor de carreira da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Defensor Público (DPE-AM). Email: mauriliocasasmaia@gmail.com / Facebook: aqui.

Fonte: Empório do Direito

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

O Princípio da legalidade, razoabilidade e proporcionalidade na aplicação da penalidade disciplinar militar

Direito Penal Militar O saber técnico normativo acerca do Direito Militar, por essência, trata-se do conjunto de temas e previsões legislativas e disciplinares que regulam o sistema das Forças Armadas brasileiras e o das Forças Auxiliares, quais sejam: as policias militares e o corpo de bombeiros militares dos Estados e do Distrito Federal. Militares são servidores públicos, lato sensu diferenciados pela Constituição Federal de 88 em relação aos servidores militares federais e os estaduais. 

A natureza jurídica dos integrantes das instituições militares é peculiar e considerada de categoria especial de servidores públicos federais, dos Estados e do Distrito Federal, com regime disciplinar e funcional próprio, Tribunal e legislação de exceção particular. A função exige dedicação exclusiva, visto que o militar, não deixa de ser militar quando acaba o expediente, cuja especificidade é a restrição de alguns direitos civis constitucionais e sob permanente risco de vida. 

Desde estas breves e necessárias considerações iniciais e entrando especificamente no tema disciplinar militar, deve-se considerar que é na Constituição Federal que se encontra delineada e definida a existência jurídica de um direito disciplinar militar, essencialmente sob a ótica da Emenda Constitucional 45/04 que alterou o artigo 125 e parágrafos, incluindo na competência da Justiça Militar Estadual o julgamento das ações judiciais contra e com origem em atos disciplinares militares. Portanto, é de fundo Constitucional a tratativa do direito disciplinar militar e, também, ao reconhecer a existência de um “direito disciplinar militar” cabe discutir os limites dos atos disciplinares e as garantias aplicadas à tais punições. 

Sem dúvida, um dos temas sempre desafiadores aos Policiais Militares que se veem envolvidos em Procedimentos Administrativos Disciplinares, tanto na condição de membro de Comissão Processante como na de indiciado, é exatamente o estabelecimento de critérios que possam servir de subsídios hermenêuticos para a ponderação entre os princípios da legalidade, da razoabilidade e da proporcionalidade, de forma a estabelecer limites à discricionalidade. 

O ato administrativo disciplinar é o posicionamento unilateral da vontade da Administração Pública Militar que, agindo nessa prerrogativa, tenha por finalidade a imposição de uma sanção disciplinar já previamente estabelecida. No entanto, dentro do atual ordenamento democrático de direito, toda e qualquer aplicação de penalidade, ainda que disciplinar, só está autorizada se observados dentro do processo apuratório, as devidas garantias constitucionais. 

Decorre, portanto, desta lógica que o princípio da legalidade, como conquista irrenunciável da Modernidade estabelece o “governo das leis” em substituição ao “governo dos homens”, e é a condição necessária para serem reconhecidos limites ao poder político, sob pena de “império do arbítrio”. Entretanto, em sua face formal a mera legalidade conduz ao arbítrio e à ilegitimidade, razão pela qual, pressupõe que os motivos determinantes sejam razoáveis e o objeto do ato proporcional à finalidade declarada ou implícita na regra de competência, sobretudo quando a ordem política e jurídica são definidas pelo Estado Democrático de Direito, forma de organização de poder em que a titularidade de domínio é legitimada pelo povo em sua titularidade e em seu exercício segundo uma dinâmica que estabelece duas dimensões: a substancial – legitimidade - e procedimental – formas de legitimação -. 

 A legitimidade está associada à busca de concretização de fins e valores positivados e a legitimação vinculada às formas procedimentais estabelecidas pelos agentes do Estado e/ou governantes de forma a concretizar e renovar os valores e princípios pactuados na ordem constitucional. Sob tal perspectiva, a atuação do Estado e seus agentes são legítimos quando exercem o poder de acordo com os valores, princípios e regras positivadas pelo Direito. 

E é somente neste sentido que deve ser compreendido o princípio da legalidade, sob pena de exercício de poder ilegítimo, particularmente quando são consideradas as múltiplas e necessárias faces da democracia – princípio fundador, informador e impulsionador – do Estado e seus agentes, bem como as diversas normas e princípios decorrentes. No ensinamento de JJ Canotilho[1] princípios são normas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionamentos fáticos e jurídicos, enquanto que regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não cumprida, portanto, princípios são normas que devem ser realizadas ou/e garantidas ao máximo e é sob tal ótica que devem ser considerados os princípios da razoabilidade e proporcionalidade na condução dos Procedimentos Administrativos Disciplinares. 

O princípio da proporcionalidade impõe que os indivíduos não devem sofrer obrigações, sanções ou restrições em medida superior à necessária ao atendimento do interesse público.

Portanto, as decisões e a condução dos processos administrativos devem ser cuidadosas e equilibradas, tendo como critério a razoabilidade, ou seja, a adequação entre meios e fins – avaliação adequada custo/benefício, tendo-se sempre em consideração o custo social do resultado. Em síntese, é do princípio da proporcionalidade que decorre a proibição do excesso – Übermassverbolt – e da falta ou de proteção deficiente – Untermassverbolt – o que exige do ato estatal adequação – aptidão a produção do resultado desejado -, necessidade ou exigibilidade – uso de meio menos gravoso e eficaz – bem como proporcionalidade em sentido estrito – relação meio/fins – no uso de medida restritiva. Desde o horizonte da ordem constitucional brasileira, o princípio da proporcionalidade é o elemento restritivo para as medidas administrativas, proibindo-se todo e qualquer excesso. 

Tal discussão assume relevância na esfera do Direito Militar ao observar-se que tanto o Código Penal Militar como o Código de Processo Penal Militar foram editados por meio de decreto-lei – uma espécie de norma amplamente utilizada durante o Regime Militar de Exceção implantado em 1964, quando a centralização de poder no Executivo acabou por autorizar a neutralização do Poder Legislativo o que se encontra definitivamente superado pelo Estado Democrático de Direito. 

No entender de Paulo Tadeu Rodrigues Rosa, o Estado deve, sob pena de responsabilidade, punir o servidor militar, obviamente. Mas isso, não pode significar, sob nenhuma hipótese ou justificativa que as decisões administrativas possam ter um caráter pessoal, sujeitando esse militar à mera vontade do seu julgador, que decide em alguns casos sem nenhum critério científico, muitas vezes com a finalidade pública totalmente desviada, confundindo claramente os conceitos de arbitrariedade e discricionariedade. 

Nesse interim, em julgado recente do STJ (RMS 27.672 de 04.10.2012), o Ministro Sebastião Reis Junior em seu voto, sustentou que o Conselho de Disciplina havia decidido pela não ocorrência de nenhum crime por parte do militar (que no caso, foi excluído de igual forma) e por consequência, há evidente falta de coerência entre as proposições estabelecidas no Conselho de Disciplina e a decisão que excluiu esse militar. O acórdão que proveu o recurso do militar decretou a inexistência de conduta reprovável e anulou a exclusão do sargento em questão. 

Portanto, via de regra, os regulamentos disciplinares militares estabelecem limites a serem observados pelo administrador militar para a aplicação das penalidades, que é, antes de tudo, um ato vinculado, com uma tendência cada vez maior jurisprudencial, doutrinária e disciplinar (visto a confecção de alguns regulamentos disciplinares estaduais recentes) que se posicione o administrador militar dentro de critérios cada vez mais objetivos, o que diminui gradativamente o grau de discricionariedade e arbitrariedade da autoridade competente para aplicação das penalidades disciplinares, aproximando o militar da ordem constitucional e reconhecendo o servidor militar como sujeito de direito e merecedor da proteção democrática. 

“Não se abatem pardais disparando canhões” é do grande jurista alemão Jellinek (Em seu discurso no Simpósio sobre Direito de Polícia em 1791 na França) e é também o caminho de discussão sob a ótica despretensiosa de inesgotamento do presente tema, que buscou alocar a pena disciplinar, assim como as penas do processo penal comum e do processo penal militar em uma posição de dever de condicionamento e vinculação à uma finalidade, não só em observâncias aos princípios do direito administrativo, mas em coerência com a ordem democrática constitucional vigente.

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[1] CANOTILHO. José. Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6ª Ed., Ed. Almedina, 1993, p. 1161.
[ 2] ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Direito Administrativo Militar – Teoria e Prática. Pg. 23 

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Publicado por Herkert Napoleão. Mariana Fernandes Lixa é advogada, sócia sênior da Herkert & Napoleão Advogados Associados, banca de advogados especializada em Direito Disciplinar Militar.