Perspetiva humanitária e tratados internacionais
1 O sistema prisional brasileiro e as violações aos direitos humanos
Os encarcerados no Brasil têm previsão de garantia de suas integridades física e moral em diversas legislações, tanto nacionais quanto internacionais, destes últimos, como exemplo as Regras Mínimas para tratamento de reclusos, instituída no I Congresso das Nações Unidas para Prevenção do Crime e para o Tratamento de Delinquentes (1955, Genebra – Suíça).
Em 11 de julho de 1984, entra em vigor a Lei de Execuções Penais, que também trata das regras para tratamento dos presos, cumprimento da pena, condições de clausura, do trabalho e da remição do preso. Pelos capítulos da Lei, é possível identificar a preocupação do legislador com o caráter humanitário do cumprimento da pena.
Apesar de ambos os estatutos demonstrarem atenção aos direitos humanos dos presos, a realidade nos cárceres brasileiros é bem diferente. As manchetes de jornais e revistas noticiam constantemente as barbáries que ocorrem no interior das penitenciárias, tais como assassinatos, além de divulgarem a real situação dos apenados e presos provisórios, bem aquém da ideal.
Apesar de ser amplamente sabido que o Sistema Penitenciário Brasileiro está falido – não cumpre seu papel ressocializador, não há individualização do cumprimento da pena, e não comporta todos os que para lá são enviados- a sociedade se cala diante dessa realidade, por acreditar que os que lá estão merecem tal sofrimento. Há uma concordância quase geral de que os delinquentes necessitam padecer dos males do Sistema, pois ‘pensarão duas vezes antes de cometerem novos delitos’.
No entanto, o alto índice de reincidência tem demonstrado o oposto – aumenta vertiginosamente com o caos do sistema, pois funciona com um ciclo, onde o indivíduo que cumpre a pena é tratado (e assim se sente) como um problema social. Ao sair, alvo de preconceito, muitas das vezes não encontra amparo social, especialmente quando se trata de emprego, e volta a delinquir. Conforme salienta Paulo César Seron:
Hoje, a execução da pena privativa de liberdade parece não cumprir a dupla função de punir e recuperar para ressocializar, conforme estabelece a Lei de Execução Penal (LEP) em seu artigo primeiro, e ainda deixa uma marca na trajetória do egresso que se configura num dos elementos mais perversos, não somente de controle, mas de exclusão social, estigmatizando-o de forma negativa para sempre.
Por outro lado, o supramencionado método APAC tem provado que é possível a queda nos índices de reincidência, quando o método humanitário é utilizado, com incentivo à reinserção, e não o repressivo e castigador.
Como consequência do descaso das autoridades, o Brasil tem sido palco de inúmeros episódios em que civis fazem justiça com as próprias mãos, a fim de dar uma resposta à própria sociedade, que assiste ao aumento da criminalidade. Tem-se ouvido com cada vez mais frequência as frases: ‘bandido bom é bandido morto’ e ‘adote um bandido’.
As violações aos direitos humanos dos presos têm sido consequência do descaso dos governantes, legitimado pela sociedade, que vê no sofrimento do preso uma espécie de pena paralela. Ao ser sentenciado, o indivíduo passa à guarda do Estado, o qual tem o dever de zelar pelos demais direitos do apenado, não atingidos pela sentença. Lamentavelmente, não é essa a realidade.
2 Os direitos fundamentais dos apenados no Brasil
A Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XLIX, assegura ao preso o respeito à integridade física e moral. A Carta consigna, ainda, que ‘ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III). A Lei de Execuções Penais, em seu capítulo II, elenca o rol de assistências assegurado aos presos. A seguir, traçar-se-á um paralelo entre a Lei de Execuções Penais e os direitos humanos reconhecidos em documentos internacionais com a realidade carcerária brasileira.
A Lei nº 7.210/1984 - Lei de Execução Penal assegura, em seu capítulo II, assistência ao preso, determinando que o recluso tenha direito à alimentação, vestuário, instalações higiênicas, além de atendimentos de saúde – médico, odontológico e farmacêutico, assistência jurídica, educacional, social e religiosa, além de acompanhamento ao egresso e assistência à família.
No entanto, o que se tem visto são constantes ofensas a tais preceitos, sendo tais agravos, segundo Carvalho Filho, a principal causa das rebeliões nos estabelecimentos prisionais.
Nas prisões brasileiras a realidade é realmente bem diferente do normatizado. Os cativos sofrem constantes agressões, tanto físicas quanto morais, por parte dos companheiros de cela e dos agentes do Estado, estes últimos impondo uma espécie de regulamento carcerário, que não está consignado na legislação, e funciona como uma sanção retributiva ao mau comportamento do preso.
3 A realidade carcerária brasileira aquém dos ideais internacionais
O Brasil é um dos países que mais ratifica Tratados de Direitos Humanos, sendo por isso visto como um país com características humanitárias e preocupado com a proteção aos direitos fundamentais.
Têm chamado atenção da comunidade internacional as graves violações aos direitos humanos ocorridas nos presídios brasileiros. As regras internacionais vêm sendo flagrantemente desrespeitadas, num total descaso das autoridades públicas.
O fracasso do sistema prisional não vem sendo tratado como prioridade pelo governo brasileiro, prova disso foi, dentre outras atitudes injustificáveis do ponto de vista da efetivação de mudanças, o cancelamento do encontro da ONU de especialistas sobre Regras Mínimas para o Tratamento dos Presos, agendado para ocorrer nos dias 28 a 31 de janeiro de 2014. A apenas uma semana da realização do evento, o Brasil cancelou o encontro, que seria sediado no País e contaria com especialistas na área.
Lúcia Nader e José de Jesus filho, respectivamente diretora executiva do Conectas Direitos Humanos e Membro da Coordenação Nacional da Pastoral Carcerária elaboraram uma carta externando sua insatisfação com o cancelamento do evento:
Tal cancelamento e com tão pouca antecedência é uma grande perda para a discussão sobre as questões prisionais mundiais que vinham avançando consideravelmente nos dois primeiros encontros realizados (a primeira reunião foi realizada em Viena e a segunda em Buenos Aires). Sendo que esse cancelamento acarretará grande prejuízo para o próprio processo de Revisão das Regras Mínimas de Tratamento do Preso. Ademais, para o próprio Brasil, em um momento tão delicado de sua história penitenciária, se fazia ainda mais importante que essa discussão fosse seriamente realizada com a participação de especialistas e autoridades de diversos países membros da ONU, o que ofereceria uma oportunidade para o Brasil repensar sua política penitenciária de modo mais aberto (grifo nosso).
Lamentavelmente, o Brasil, não obstante demonstrar internacionalmente seu interesse em preservar e legitimar os direitos humanos, tem agido de forma imprudente quanto à questão da violência aos direitos fundamentais dos presidiários. Ressalte-se que tais violações afrontam gravemente a Constituição Federal, na medida em que a Carta Maior assegura, em seu artigo 4º, II, que o Brasil reger-se-á, em suas relações internacionais, pela prevalência dos direitos humanos, sendo a proteção a tais direitos, verdadeiro imperativo constitucional.
Levanta-se, assim, uma problematização a respeito da posição brasileira frente a tão graves desrespeitos: a quem interessa que o país continue permitindo a falência do sistema prisional? Ainda não se consegue, com clareza, elucidar tal questionamento. Entretanto, é fundamental que o país adote posição enérgica e urgente diante desse quadro, sob pena de tornar-se o que visa combater: um Estado arbitrário e pouco preocupado com os direitos humanos.
4 O tratamento dos presos e as violações aos documentos internacionais
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também chamada de Pacto de San José da Costa Rica, foi aprovada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em 22 de novembro de 1969. Ao Pacto, o Brasil aderiu em 09 de julho de 1992, ratificando-o em 25 de setembro de mesmo ano.
A Convenção traz em seu conteúdo diversas garantias aos direitos fundamentais, e nasce “reafirmando seu propósito de consolidar, neste Continente, um regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito dos direitos essenciais do homem”.
Em seu artigo 11, o Pacto assegura a proteção da honra e da dignidade, afirmando que 'toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade' e ainda que 'toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou ofensas'.
A Constituição Federal, em seu artigo 1º, também assegura a preservação da dignidade da pessoa humana, indistintamente, na medida em que tem como fundamento tal princípio.
Analisando os excertos, observa-se que em nenhum dos documentos há restrição de pessoas, não se vislumbrando qualquer termo que impeça os privados de liberdade de terem preservados sua honra e dignidade.
A superlotação carcerária tem sido uma das maiores violações aos direitos humanos dos presos no Brasil, sobretudo pelas péssimas condições dos compartimentos de clausura. Celas em que se amontoam dezenas de presidiários, sem o mínimo de conforto e higiene, conforme determinam tanto as Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos quanto a Lei de Execução Penal Brasileira.
A quantidade de presos provisórios aguardando julgamento é fator decisivo na questão da superlotação carcerária. Essa categoria de detidos é alocada com os presos condenados, justamente por não se ter estabelecimentos suficientes para esse tipo de preso, o que acaba inflando as penitenciárias, em nítido desacordo com as Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos, em que os presos provisórios deverão ser mantidos separados dos condenados.
Curioso notar que o documento supramencionado é enfático ao determinar que os presos provisórios deverão ser mantidos separados dos condenados, o que não acontece na maior parte dos presídios brasileiros.
A seguir, será feita uma análise das principais violações aos direitos humanos dos encarcerados brasileiros, estabelecendo um comparativo entre os documentos internacionais e a prática processual e penitenciária. Ao final, analisar-se-á jurisprudência da Suprema Corte, em que se reconhecem graves violações aos direitos humanos de presos em caráter provisório.
5 A superlotação carcerária e a estrutura dos estabelecimentos como fator de violação aos direitos humanos
Uma das graves violações sofridas pelos presos brasileiros advém da superlotação carcerária a que são submetidos. Celas pequenas, sem condições de albergar dignamente sequer cinco detentos, são ocupadas por quinze, ou até vinte deles, num flagrante desrespeito às condições mínimas estabelecidas, tanto na Lei de Execução Penal Brasileira, quanto nos documentos internacionais relativos à matéria.
A Resolução de 31 de agosto de 1955, que trata das Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos, além de pontificar que as celas ou locais destinados ao descanso notório não serão ocupadas por mais de um preso, fazendo ressalvas em casos especiais, traz regras para os locais destinados aos reclusos, que devem satisfazer todas as exigências de higiene e saúde.
O coordenador nacional da Pastoral Carcerária, Padre Valdir João Silveira, em entrevista à revista Carta Capital, enfatizou a violação aos direitos dos presos nesse aspecto:
No Brasil podemos comparar o presídio às senzalas. Há um perfil bem definido das pessoas que estão lá dentro. E se falarmos de condições dentro da prisão, estamos falando dos palanques que havia nas senzalas. Eu pergunto, então: como melhorar o palanque de tortura? Como melhorar a condição do palanque de tortura? Colocando um palanque de ouro, de ferro? Como vai ser isso? O presídio é um palanque de tortura como eram as senzalas, mas hoje das periferias e dos pobres. Se houvesse outro público lá dentro, podíamos não pensar nisso. Mas não tem como, é algo muito seletivo.10
Valdir ainda complementa, afirmando que a instituição prisão, estabelecida para punir e ressocializar, está legitimando as violações perpetradas contra os encarcerados:
É a instituição [prisão] na qual se garantem as violações de diretos básicos da pessoa. Então, tudo o que vai a favor do direito de alguém é quebrado. A regra está ali para quebrar os direitos básicos da pessoa. A pessoa é presa para lhe ser retirada a liberdade de ir e vir. Todos os demais direitos são garantidos pela lei, porém todos acabam violados por essa instituição.11
A Resolução que estabelece as Regras Mínimas foi ratificada pelo Brasil em 28 de setembro de 1989, e destina especial atenção às acomodações dos reclusos. Dentre outros aspectos, assegura que os dormitórios deverão satisfazer todas as exigências de higiene e saúde, que as instalações sanitárias deverão ser adequadas, e que os presos deverão ser separados por categorias.
Além disso, traz regras sobre o fornecimento de materiais para higiene pessoal, vestuário e roupa de cama, alimentação, e serviços médicos. Saliente-se que tais disposições constam na Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84), na Seção II.
No entanto, a realidade brasileira é bem diferente. Basta observarmos os relatos de ex-presidiários e agentes carcerários, para constatar que tais regras não são, nem de longe, cumpridas no sistema penitenciário do Brasil. Existem, inclusive, presídios em que os familiares dos detentos recebem informativos listando objetos em que precisarão levar aos encarcerados, em flagrante desrespeito às normas internacionais, especialmente à Resolução que trata das regras mínimas ao tratamento de reclusos, bem como à Lei de Execução Penal, que positiva claramente que é dever do Estado assistir materialmente o encarcerado.
6 Direitos humanos violados por agentes estatais e pelos companheiros de cárcere
A mencionada Resolução também traz limites à atuação do poder estatal frente à disciplina dos presidiários, determinando, dentre outros, que as legislações devam tratar sobre as infrações disciplinares dos presos:
DISCIPLINA E SANÇÕES
A ordem e a disciplina devem ser mantidas com firmeza, mas sem impor mais restrições dos quais necessárias para a manutenção da segurança e da boa organização da vida comunitária. [...] Os seguintes pontos devem ser determinados por lei ou regulamentação: a) a conduta que constitua infração disciplinar; b) o tipo e a duração das sanções disciplinares que podem ser aplicadas e c) a autoridade competente para pronunciar tais sanções. [...] As penas corporais, a colocação em ‘segredo escuro’ bem como todas as punições cruéis, desumanas ou degradantes[...] A sujeição a instrumentos tais como algemas, correntes e ferros não devem ser usados como instrumentos de coação.
Tais regramentos funcionam como limites à arbitrariedade dos Estados no tratamento da indisciplina dos reclusos, em defesa dos direitos humanos em sua essência, que foi reconhecidamente instituído para limitar os alvedrios estatais, especialmente após o massacre da Guerra Mundial iniciada em 1939.
Destarte, a Lei de Execução Penal estabelece, em seu artigo 45, que ‘não haverá falta nem sanção disciplinar sem expressa e anterior previsão legal ou regulamentar’.
Importante ressaltar que as violações ocorrem, também, pelos próprios companheiros de cárcere, fruto de uma rivalidade interna dentro dos estabelecimentos prisionais, onde há uma lógica própria de funcionamento. Ilustrando tal realidade, a chacina ocorrida em 2013 no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão, onde pelo menos sessenta presos foram assassinados pelos companheiros de prisão, por uma disputa de poder dentro do Complexo.
Foi o que concluiu o Juiz coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), do CNJ, Douglas de Melo Martins, que relatou as condições de violação aos direitos humanos a que os presos estão submetidos, incluindo relatos de estupro dentro do complexo. O Juiz concluiu, ainda, que há ocorrência de tortura cometida pelos agentes estatais, afirmando que “o Estado tem se mostrado incapaz de apurar, com o rigor necessário, todos os desvios por abuso de autoridade, tortura, outras formas de violência e corrupção praticadas por agentes públicos”.
7 Os presos provisórios e as violações aos direitos humanos
Uma grave violação aos direitos humanos bem presente no cenário prisional brasileiro é cometida face aos presos provisórios, que têm ultrapassado – em muito – seu prazo de prisão preventiva. Nesse ínterim, ficam – sem o aparato da lei e, portanto, ilegalmente – reclusos, aguardando julgamento em três, quatro e até quinze anos.
Há grave violação aos direitos humanos no que diz respeito ao excesso de prazo da prisão preventiva, pois fere o direito à liberdade do indivíduo, conforme ratifica o posicionamento do Supremo Tribunal Federal nos acórdãos sobre a matéria:
Ementa: HABEAS CORPUS. EXCESSO DE PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA. CARACTERIZAÇÃO. SITUAÇÃO INCOMPATÍVEL COM O PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO (CF, ART. 5º, LXXVIII). CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. ORDEM CONCEDIDA. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que a demora para conclusão da instrução criminal, como circunstância apta a ensejar constrangimento ilegal, somente se dá em hipóteses excepcionais, nas quais a mora seja decorrência de (a) evidente desídia do órgão judicial, (b) exclusiva atuação da parte acusadora, ou (c) outra situação incompatível com o princípio da razoável duração do processo, previsto no art. 5º, LXXVIII, da CF/88. Precedentes. 2. No caso, transcorridos mais de 4 anos sem que o paciente sequer tenha sido levado a júri, é de se concluir que a manutenção da segregação cautelar representa situação de constrangimento ilegal. 3. Ordem concedida, para que o paciente seja posto em liberdade, salvo se por outro motivo estiver preso.
Pelo Acórdão referente ao Habeas Corpus 108929/PE o Supremo Tribunal Federal entende que violam os direitos humanos de preso provisório que tem a prisão com excesso de prazo, reformando a decisão do Superior Tribunal de Justiça, que denegou a ordem, com a alegativa de que o excesso de prazo se justifica na periculosidade do indivíduo.
O presente caso trata do excesso de prazo de uma prisão preventiva em que o acusado estaria quatro anos aguardando a sentença de pronúncia definitiva. O processo esteve parado por mais de 1 ano e seis meses.
O Relator, Ministro Teori Zavascki decidiu no sentido de que a demora configura culpa exclusiva do Estado, para a qual o acusado não concorreu, e a manutenção da segregação cautelar configura constrangimento ilegal e viola a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto São José da Costa Rica), em seu artigo 7º, que estabelece que ‘ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas constituições políticas dos Estados-Partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas’. A Constituição Federal assegura ao acusado o direito à ampla defesa e ao contraditório, antes que seja proferida a sentença, além de consignar o princípio da razoável duração do processo, institutos desrespeitados quando a prisão cautelar extrapola o prazo estabelecido.
Tal demora, além de violar o direito do preso, no caso o paciente do Habeas Corpus, viola indiretamente os direitos humanos dos demais encarcerados, tendo em vista que contribui para o aumento da superlotação. É só considerar-se que, se todos os presos provisórios demandassem prazos extensos para serem julgados e condenados, estaríamos diante de um caos dos estabelecimentos, já que os que poderiam, por lei, estar respondendo o processo em liberdade, não estão pela sobrecarga processual que assola o Judiciário.
8 Conclusão
O Brasil tem demonstrado interesse em seguir a corrente de reconhecimento e valorização desses direitos, ratificando inúmeros tratados de direitos humanos frente à Comunidade Internacional. Um dos mais importantes, a Convenção Americana de Direitos Humanos, subscrita pelo Brasil em 1992, trata de diversas matérias sobre direitos humanos, dentre as quais a proteção da honra e da dignidade, e dos direitos à vida e à integridade.
Não obstante à posição brasileira, o País tem sido palco de graves violações aos direitos humanos, especialmente dos indivíduos submetidos à privação de liberdade. Assassinatos, propagação de doenças, constantes lesões corporais cometidas pelos agentes estatais e por outros encarcerados, ocorridos dentro das unidades prisionais reforçam a conclusão de que o sistema penitenciário brasileiro encontra-se em grave crise.
Tal crise reflete nos índices de criminalidade, tendo em vista o alto grau de reincidência do país. Há muito o objetivo ressocializador não vem sendo atingido, e têm sido crescentes as discussões no sentido de buscar alternativas ao problema, inclusive com opiniões contrastantes, a exemplo da privatização dos presídios em contraponto à total extinção dos estabelecimentos prisionais. No entanto, os posicionamentos convergem num ponto: é urgente a necessidade de uma reforma.
Analisando a questão carcerária e as graves violações a que os apenados estão submetidos no Brasil, chega-se à pesarosa conclusão de que o sistema prisional brasileiro está em ruínas, necessitando de uma reforma urgente em todos os aspectos, desde a prisão do delinquente até o acompanhamento do egresso do sistema, procurando inseri-lo socialmente a fim de evitar que seja mais um número a aumentar as estatísticas da reincidência.
Aliem-se a estes o fato de que, devido à superlotação em grau elevado, celas com capacidade para abrigar no máximo cinco presos, são ocupadas por vinte deles, em condições absolutamente desumanas e precárias, contribuindo para a ocorrência de inúmeros tipos de violências, cometidas pelos próprios companheiros de cárcere, tais como física, sexual e psicológica.
Cria-se, assim, um ambiente favorável à reincidência, na medida em que o encarcerado passa a conviver dentro de um estabelecimento em condições subumanas, totalmente desprezado pelas políticas públicas e sem qualquer perspectiva quando adquirir novamente a liberdade.
Restou demonstrado que as violações ocorrem de diversas maneiras, desde a estrutura dos estabelecimentos até a demora judicial em julgar processos de presos cautelares, o que acaba contribuindo ainda mais para a sobrelotação.
A Constituição de 1988 trouxe uma série de garantias aos brasileiros, e dessa categoria não estão excluídos os reclusos. No entanto, há que se reconhecer que direitos que vão além do direito à liberdade – este legitimamente restrito pela sanção penal – estão sendo gravemente desrespeitados, tais como o direito à vida, à saúde, à integridade física, à assistência material.
Cabe, a partir dessa perspectiva, refletir-se a quem interessa manter os apenados brasileiros nas condições degradantes em que se encontram. O sistema penitenciário brasileiro vem sendo relegado a segundo, terceiro ou décimo plano, talvez pelo fato de que grande parte dos reclusos têm seus direitos políticos suspensos. Caso seus votos fossem computados nas eleições, certamente seriam vistos de forma diferente.
A reforma necessita ser institucional e completa, desde a apreensão do delinquente, passando por seu tratamento nos estabelecimentos, assistência material, médica e judiciária, até sua saída. O papel do Judiciário é fundamental, necessitando que haja ampliação no número de Varas Penais, magistrados, promotores, defensores. Como restou demonstrado, a superlotação, que é fator de violação aos direitos humanos e forte incentivadora da reincidência, encontra, dentre outras, sua justificativa na morosidade processual, já que é alto o número de presos sem julgamento.
É importante que o Brasil se posicione de forma prática no sentido de coibir tais violações aos direitos humanos dos presos, na medida em que o próprio ordenamento pátrio, bem como os tratados internacionais sobre a matéria, conferem tais garantias aos encarcerados. Além disso, é necessário que haja uma mudança de mentalidade na sociedade como um todo, devendo-se abandonar a ideia de pena retributiva e do enclausuramento como pena paralela.
Deve-se, ao contrário, promover-se a implantação de métodos que reduzam os índices de reincidência, tais como o método APAC, que tem demonstrado a eficácia de se dispensar uma maior atenção ao presidiário, especialmente ao egresso do sistema prisional, aliando esforços da família, do Estado, da comunidade e do próprio segregado, que passa a vislumbrar uma inserção plena, ao sair da prisão.
É fundamental, ainda, estimular a visita de grupos de apoio, inclusive religiosos, dentro das penitenciárias, já que este trabalho promove a mudança de mentalidade e transformação de vida dos detentos, que passam a cultivar elementos espirituais.
Para que se diminuam os índices de reincidência, é necessário trabalhar no sentido de transformar o preso. Conforme demonstrado, tal tarefa não é impossível. É necessário que a ideia do cárcere como pena paralela seja descartada, e que seja efetivo o acompanhamento de cada recluso. Além disso, os agentes estatais devem funcionar como garantidores dos direitos dos presos, e não o contrário. É imperioso que a sociedade acredite na possibilidade de inverter o atual quadro, onde os números da violência aumentam em progressão geométrica.
Travar uma espécie de guerra civil contra os delinquentes seguramente não resolve o problema. Tratar os ativistas dos direitos humanos como tutores de assassinos, também não. O que se pretende é a obediência aos direitos humanos, dos homens e para eles, independentemente de sua atuação social. Deve-se, sim, haver uma conjuntura de esforços no sentido de viabilizar a ressocialização do egresso, além de garantir o tratamento humanitário aos detentos.
Publicado por Anna Judith
Revista JusBrasil