sábado, 8 de junho de 2013

Famílias do Cárcere: o Estado e a Sanha Punitiva

 
Ana Paula Oliveira
Nelson Gomes Junior
  

A família ocupa um destacado lugar nos processos de constituição da subjetividade humana. É no chamado processo de socialização primária que experienciamos inicialmente o mundo e damos os primeiros passos frente à longa caminhada que está por vir no restante da vida. Além disso, a família é, frequentemente, o grupo acolhedor dos seres humanos em seus momentos de dor, dificuldades e necessidades, desempenhando papel fundamental no que se refere aos laços sociais, troca de afetos e reflexões sobre a vida.
 
 
No universo prisional, a família do apenado exerce funções absolutamente significativas, como a ligação mais direta com o mundo externo ao cárcere, a satisfação de vínculos afetivos e sexuais, a inequívoca contribuição para sobrevivência física do preso (provendo alimentos, remédios, materiais de higiene pessoal ou quitando dívidas) e, principalmente, ocupando postos fulcrais no tocante à sobrevivência existencial do encarcerado, afinal, a prisão não só priva o condenado da liberdade, mas cotidianamente o silencia, viola sua dignidade, rompe vínculos sociais e contribui, fortemente, para o dilaceramento da existência humana.


Frente ao exposto, observa-se que a manutenção dos vínculos familiares através das “visitas do cônjuge, da companheira, parentes e amigos em dias marcados” é um direito do preso, conforme dispõe a Lei de Execuções Penais. Na prática, o que se observa é a corriqueira desobediência a essa garantia, postas as reiteradas dificuldades apresentadas pelas unidades prisionais em receber os visitantes, destacando-se dentre elas, as péssimas condições de espera nas filas dos presídios, o desrespeito no trato cotidiano e a exposição constrangedora durante os processos de revista e visita íntima.


Essa discrepância entre o disposto na legislação e sua materialização é traço característico do Estado brasileiro e a Paraíba não se configura como exceção. O descaso com o público externo é reflexo do “jeitinho” com que o apenado é concebido e tratado. A idéia de que o preso é “lixo humano” ou um “monstro” e que, portanto, merece ser relegado e sofrer em demasia, é estendida para os familiares e todos aqueles que se preocupam com a dignidade humana no âmbito prisional. Não é raro ouvirmos “pérolas” como: “Está com pena? Leva pra casa”, como se não fosse obrigação do Estado tratar de modo digno aqueles a quem se propõe a tutelar. Infelizmente o que vemos é a extensão da pena àqueles que não cometeram crime algum: os familiares.


A parcela majoritária dos visitantes que adentram as unidades prisionais é constituída por mulheres, em sua maioria, pobres e dotadas de pouca instrução escolar. São elas as potenciais colaboradoras no processo de ressocialização, entretanto, ao invés do espírito cooperativo que o poder público deveria incitar, o que se constata são as familiares sendo vitimadas pelos mais diversos tipos de discriminações, dentre as quais, a de classe e a de gênero, sendo, arbitrariamente coagidas ao cumprimento de normas consignadas ao alvedrio de cada instituição prisional. Acrescente-se a isso, a dificuldade no acesso à justiça, as ameaças sofridas e a completa sujeição aos humilhantes ritos impostos pela dinâmica prisional.

 
É chegada a hora de uma transformação social que atue no âmbito das mentalidades e das práticas de gestão dos presídios paraibanos, atualmente mais parecidos com masmorras medievais do que com verdadeiros centros de ressocialização. A relação dos estabelecimentos prisionais com as familiares deveria ser parte efetiva de nossas políticas públicas e de desenvolvimento humano. As famílias não são o inimigo a ser abatido, ao contrário, vêm delas o que ainda resta de humanização no falido processo de encarceramento brasileiro. Vem delas a proteção afetiva, a manutenção de sonhos e a esperança de dias melhores por parte dos que estão aprisionados. Que o Estado e sua sanha punitiva não apaguem a chama de lucidez e ternura que ainda nos resta. 


(Publicado no Jornal Contraponto em 07/06/2013)
Retirada do Blog Concretudes Imprecisas.
 

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